Do Ignaro ao Pragmático: relações Brasil-China expõem diferença entre a política externa de Bolsonaro a Lula
Gaudêncio Penaforte
A visita de Estado que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizou nesta semana à China marca mais que um gesto diplomático protocolar: representa a reafirmação de uma política externa pragmática, plural e coerente com a tradição brasileira de não alinhamento automático a potências. Ao retomar o diálogo estratégico com Pequim e relançar as bases de cooperação econômica e política entre os dois países, Lula reposiciona o Brasil no tabuleiro internacional após quatro anos de isolamento voluntário e sectarismo ideológico do governo anterior.
O contraste com a era Jair Bolsonaro não poderia ser mais evidente. Desde a campanha eleitoral de 2018 e, sobretudo, durante seu mandato, Bolsonaro ancorou a política externa brasileira em um alinhamento automático e submisso aos Estados Unidos de Donald Trump. O governo ignorou os princípios históricos da diplomacia brasileira, adotando uma retórica agressiva contra a China — principal parceiro comercial do país desde 2009 — e afastando-se de fóruns multilaterais que sempre prestigiaram a atuação brasileira como voz moderada e articuladora no Sul Global.
O ponto mais agudo dessa política de confronto se deu ainda antes da posse, quando, como presidente eleito, Bolsonaro enviou representantes a Taiwan, contrariando a política de Uma Só China — princípio diplomático respeitado por sucessivos governos brasileiros desde 1974. O gesto provocou mal-estar imediato com Pequim e sinalizou uma política externa regida mais por impulsos ideológicos do que por interesses nacionais estratégicos.
Durante a pandemia, a escalada de tensões atingiu novos patamares. Declarações hostis de Bolsonaro, de seus ministros e de seu filho Eduardo — que chegou a acusar a China de conspirar para espalhar o coronavírus — comprometeram as relações bilaterais em um momento crítico para a obtenção de vacinas, insumos médicos e equipamentos hospitalares. A diplomacia brasileira, isolada e enfraquecida, viu-se obrigada a administrar crises sucessivas enquanto o comércio bilateral seguia crescendo, a despeito do ambiente político deteriorado.
Com Lula, o Brasil reassume seu papel tradicional: busca de diálogo equilibrado, defesa do multilateralismo e integração produtiva com a China, não apenas como fornecedor de commodities, mas como parceiro em tecnologia, infraestrutura, transição energética e saúde pública. A recente visita a Pequim, com numerosa comitiva de ministros, governadores e empresários, teve como objetivo estratégico reequilibrar as relações com o principal parceiro comercial do Brasil e buscar a ampliação dos investimentos chineses no país.
Durante a estada em Pequim, Lula também participou do Fórum China-CELAC, encontro que reuniu chefes de Estado e chanceleres da América Latina e Caribe para discutir novas rotas de integração e financiamento no Sul Global. O fórum reforçou o papel da China como principal parceiro comercial da região e maior fonte alternativa de crédito para projetos de infraestrutura e desenvolvimento. Embora o Brasil tenha mantido sua posição cautelosa em relação à Iniciativa do Cinturão e Rota, o evento evidenciou a disposição brasileira de atuar de forma articulada no âmbito regional, resgatando a tradição diplomática de liderança e cooperação horizontal no Hemisfério Sul.
Entretanto, o resultado concreto da viagem ficou aquém das expectativas mais otimistas. Embora o encontro tenha rendido manifestações de afinidade política — como as críticas conjuntas ao unilateralismo e ao protecionismo da nova gestão Trump — e reafirmado a parceria estratégica, os anúncios efetivos de novos investimentos foram bastante tímidos. O saldo revela o pragmatismo da diplomacia brasileira, consciente dos interesses convergentes, mas também das tensões que permeiam a relação.
Um fator de preocupação, e que explica a cautela de Brasília, é a política tarifária dos Estados Unidos em relação à China. O tarifaço imposto por Trump reduz a competitividade dos produtos chineses no mercado americano. O temor, com razoável fundamento, é que a China busque compensar essa perda deslocando seu imenso excedente industrial para outros mercados, entre eles o Brasil, o que poderia afetar segmentos industriais locais e ampliar o déficit na balança de manufaturados.
Importa destacar, ainda, que a aproximação com a China não implicou adesão automática ou dependência estratégica. O Brasil, mesmo em meio à intensificação dos laços bilaterais, optou por não aderir à chamada Iniciativa do Cinturão e Rota — a Nova Rota da Seda — lançada por Pequim como instrumento geopolítico e econômico de projeção global. A iniciativa já conta com a adesão de 148 países, mas o Brasil sinaliza, sob o governo Lula, a intenção de preservar autonomia e seletividade em seus compromissos internacionais. A recusa em aderir à Nova Rota da Seda, portanto, desmente as acusações de alinhamento geopolítico irrestrito a Pequim.
Nesse sentido, a recondução da ex-presidente Dilma Rousseff à presidência do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o chamado “Banco dos BRICS”, simboliza o prestígio recuperado do Brasil no bloco. Dilma exerce a função em um momento estratégico, quando o banco se expande e busca consolidar-se como alternativa relevante às instituições financeiras dominadas pelo eixo Washington-Bruxelas. O gesto sinaliza a retomada da liderança brasileira num dos fóruns mais relevantes da nova multipolaridade internacional.
Como esperado, parte da imprensa tradicional tentou desviar o foco do êxito diplomático da viagem para um episódio lateral, envolvendo a primeira-dama Janja da Silva. Um suposto comentário privado sobre o TikTok, atribuído a ela durante um jantar restrito, ganhou manchetes forçadas e virou falso escândalo instantâneo. Na última coletiva de imprensa em Pequim, Lula rechaçou a especulação e classificou a história como “fofoca improdutiva”, evidenciando o quanto setores da mídia ainda resistem em lidar com a política externa como tema de Estado.
O mais vistoso exemplo desse ranço conservador e anacrônico veio do editorial do O Estado de S. Paulo, sob o título “A má-fé estratégica de Lula em Pequim”. O jornal até reconhece que a visita de Lula resultou em “acordos e promessas de investimentos bilionários chineses no Brasil”, mas logo adverte que o episódio “expôs os vícios ideológicos de Lula”, a quem acusa de “empregar a cooperação comercial como pretexto para alinhamento geopolítico”.
O disparate desta afirmação é evidente: o editorialista confundiu conceitos elementares, tratando cooperação comercial como sinônimo de cooperação bilateral. E acusar o governo de alinhamento geopolítico justo à luz da recusa em aderir à Nova Rota da Seda é agredir a inteligência de qualquer leitor minimamente bem-informado.
O jornal da família Mesquita ainda “exige do chefe de Estado brasileiro uma conduta madura, guiada pelos interesses nacionais, e não fetiches ideológicos” — sem dizer quais seriam esses interesses. Num exercício de retórica estéril, o texto acusa Lula de “disfarçar seu alinhamento a Pequim sob o manto de um pragmatismo virtuoso: garantir investimentos e acesso ao mercado chinês”, para concluir, em tom messiânico, que “a verdade é que Lula utiliza os negócios como pretexto para satisfazer suas inclinações ideológicas e ambições pessoais.”
As diatribes não param aí. O editorial sentencia que “é necessário que a diplomacia sirva ao interesse do Estado brasileiro — não às idiossincrasias de um líder obcecado por glórias internacionais.” E, como se investido de tribunal de exceção da consciência nacional, arremata: “Lula, em vez de liderar o Brasil com sobriedade em um mundo multipolar, arrisca transformá-lo em satélite de uma autocracia. Ao fazê-lo, trai a tradição do Itamaraty, pisoteia valores inscritos na Constituição, como a primazia da democracia e dos direitos humanos, e arrisca alienar parceiros do Ocidente. Os negócios com a China são bem-vindos. A subserviência, não.”
Falta, evidentemente, qualquer menção à deriva autoritária de Trump — este, sim, amigo íntimo de autocratas — ou à vergonhosa subserviência de Bolsonaro a Washington. Ao escolher ignorar esse passado recente, o Estadão, mais uma vez, se revela incapaz de lidar com a política externa brasileira fora do cabresto do atlantismo servil.
Do ignaro ao pragmático, a política externa brasileira dá sinais de reencontro com sua tradição diplomática: soberana, altiva e afeita a construir pontes onde antes se viam muros — mas agora com o cuidado de vigiar os termos das travessias e de proteger o debate público contra o moralismo seletivo e a desinformação editorial travestida de zelo cívico.
Gaudêncio Penaforte é jornalista, ensaísta e analista de política internacional.