Gaudêncio Penaforte
Excluvivo para o Almanaque Futuro
A vertiginosa queda de popularidade do presidente Lula tem causado perplexidade. Não apenas entre analistas de ocasião, sempre dispostos a embaralhar números e criar diagnósticos convenientes, mas também no núcleo do governo, que parece atônito diante de um desgaste crescente e incontornável. Enquanto isso, o petismo de cúpula se agarra a explicações que mais soam como desculpas. Há quem diga que se trata de um soluço transitório da opinião pública, um reflexo passageiro de um momento de pessimismo generalizado. Outros apontam o dedo para as redes sociais, como se o bolsonarismo digital fosse uma novidade. E, por fim, há os que apostam na velha máxima: “É a economia, estúpidos!”.
Essa última explicação parece confortável demais. Como se bastasse ao governo apresentar indicadores macroeconômicos positivos para reverter a curva de desgaste popular. É um autoengano conveniente, mas perigoso. Porque não é a economia, estúpidos! O que está em jogo é o esgotamento de um projeto de poder que, embora tenha sido central na redemocratização do Brasil, já não oferece respostas para o presente — muito menos para o futuro.
Os números frios da economia não explicam o tamanho da rejeição. O PIB cresceu mais que o previsto em 2023, a inflação foi controlada, o desemprego caiu, programas de transferência de renda foram ampliados. O salário mínimo voltou a ser valorizado. Ainda assim, a popularidade do presidente despenca. Isso mostra que o problema não se resume ao preço do tomate ou à renda do trabalhador formal. O que há é um cansaço político e cultural com a narrativa do lulismo, uma fadiga de materiais que o próprio Lula e seu entorno se recusam a reconhecer.
O lulismo envelheceu. O PT, aos 45 anos, tornou-se um partido mais interessado em preservar seus ativos políticos e seu espólio histórico do que em reinventar a esquerda brasileira. Lula, que há duas décadas representava a esperança e a superação, hoje encarna a administração de um passado que já não volta. O que sobrou foi a repetição enfadonha de uma narrativa que não conversa com as novas gerações — e que, pior, está deslocada da realidade do Brasil contemporâneo.
O petismo hoje se refugia numa retórica de superioridade moral e patrulhamento ideológico, que fragmenta e afasta. O identitarismo, quando instrumentalizado como projeto de poder e não como plataforma de emancipação real, serviu para reduzir o alcance do discurso de esquerda. O que deveria ser um projeto de inclusão virou uma prática de segmentação. E, com isso, as bases populares, que outrora formavam o chão do lulismo, afastaram-se. Não porque se tornaram conservadoras, mas porque não se veem mais reconhecidas em uma política que parece falar apenas a nichos específicos.
O identitarismo dogmático, cultivado nas bolhas de classe média ilustrada que orbitam a esquerda, afastou multidões que precisam de políticas públicas, e não de sermões. A linguagem dos direitos e das causas sociais foi sequestrada por um moralismo excludente que demoniza qualquer dissidência. As causas legítimas — como as lutas das mulheres, dos negros, dos indígenas, da população LGBTQIA+ — foram instrumentalizadas para compor uma identidade política autorreferente, sem diálogo com a totalidade social. Isso abriu espaço para a extrema-direita se apresentar como voz dos “invisíveis”, dos “desprezados pelo sistema”, mesmo que seja uma fraude.
Enquanto o PT insiste em debater consigo mesmo, a direita se reorganiza. E não estamos falando de uma direita democrática, mas de uma onda reacionária que já está em curso no mundo. A volta de Donald Trump à Casa Branca, agora em seu quarto mês de governo, é a prova cabal de que o autoritarismo não é um fantasma do passado, mas uma realidade presente. Trump não retornou para governar — retornou para se vingar, para desmontar os alicerces da democracia liberal e impor um brutalismo político que já se manifesta na perseguição aberta a imigrantes, no ataque às minorias, no fortalecimento de milícias paramilitares e na corrosão das instituições democráticas. Ele ataca sistematicamente todas as instituições essenciais: a justiça, a mídia, as universidades e até mesmo os pilares que sustentam o debate público. O desmonte dessas instituições é o que alimenta o veneno do autoritarismo.
Além disso, o cenário de insegurança e violência no Brasil se agrava a cada dia. Uma das principais ameaças à democracia na região é a escalada do crime organizado, que controla territórios, infiltra-se na política e corrói as instituições. Embora a responsabilidade pela segurança pública recaia, em grande medida, sobre os governos estaduais, o desgaste recai de forma mais evidente sobre o governo federal, que se mostra inerte diante da violência. O PT não tem um bom histórico na área — tanto em administrações federais quanto em estaduais. Tome-se o exemplo da Bahia, governada pela sigla há quase duas décadas, onde se desenvolveu uma das polícias militares mais letais do país, operando sob um viés claramente permeado pelo racismo estrutural, que atinge desproporcionalmente a população negra. A segurança pública, cada vez mais precária, será um dos temas centrais da disputa de 2026 e uma das principais vulnerabilidades de uma possível candidatura de Lula à reeleição. Sociedades acuadas pela sensação de insegurança são presas fáceis do populismo de direita, a exemplo do que vivenciamos com Trump, com Milei na Argentina e Bukele em El Salvador.
Não há garantias de que a democracia brasileira resistirá a um novo governo de extrema-direita. A experiência do trumpismo atual, já em curso, demonstra o quão frágil pode ser um regime democrático diante de um projeto autoritário decidido a destruir as instituições de dentro para fora. O Brasil não está imune a isso. O que Trump faz agora, Bolsonaro tentou fazer — e voltará a tentar, seja ele próprio ou seu sucessor político.
É por isso que o autoengano do PT precisa ser rompido. Não há mais tempo para estratégias de marketing ou para acreditar que um bom desempenho econômico seja suficiente para barrar a maré conservadora. O lulismo esgotou seu ciclo. Se não houver uma correção profunda de rota, se a esquerda brasileira não for capaz de construir uma frente ampla, democrática e progressista, ancorada em um novo projeto de país que dialogue com as novas gerações e com as classes populares, será atropelada pelos fatos.
Não é a economia, estúpidos! É a política. É a democracia. É o risco real de regressão autoritária. Os sinais são inequívocos e o tempo é curto.
Se o Brasil quiser evitar repetir o que hoje ocorre nos Estados Unidos, precisa agir já. Antes que seja tarde demais.
Novo colunista! Jornalista e cientista político por distração, Gaudêncio Penaforte cobre os bastidores de Brasília desde os anos 90. Defensor intransigente da democracia, dos valores republicanos e da proteção aos mais vulneráveis, tem horror ao falso moralismo udenista e ao presidencialismo de balcão. Conhecido pelo texto cortante e pelo humor ácido, acredita que política se fiscaliza de perto e sem ilusões. É otimista teimoso com o país e pessimista disciplinado com os governos. Gaudêncio escreverá com exclusividade ao Almanaque Futuro (RRB).