A arte de meter palavras desde muy temprano
O portal Almanaque Futuro amplia o espaço aos colaboradores que desejam expressar o pensamento nas mais variadas formas de comuniação, a exemplo do nosso novo e ilustre convidado.
Pedro Santafé
Exclusivo Almanaque Futuro
Há amizades cuja substância se mede menos pelo consenso e mais pelo prazer da discordância meticulosamente cultivada. A nossa é dessas. Somos, desde sempre, praticantes de uma retórica amistosa e ligeiramente belicosa, na qual as palavras importam menos pelo que significam e mais pelo como se insinuam na conversa.
Hoje cedo, por exemplo, fiz o que me é habitual: meti-lhe uma avalanche de notícias. Disse-lhe exatamente assim, “Meto-lhe uma avalanche de notícias desde muy temprano!”, mesclando castelhano de almanaque e uma certa fanfarronice verbal, própria das manhãs em que acordo com gosto pelo idioma.
Enquanto ele ainda tateava entre o primeiro café e o segundo suspiro do dia, eu, tomado por súbito fervor etimológico, indaguei-me se a nobre “Tempranillo”, videira de predileção espanhola, não deveria sua alcunha à sua maturação precoce. Afinal, se há coisa que um espírito de manhã bem-disposto aprecia, é a coincidência entre o nome e a natureza das coisas.
Mas, alheio às minhas epifanias lexicais, meu amigo preferiu deter-se num detalhe de ordem gramatical. Retrucou com aquela mansidão ferina dos que sabem cutucar: “Você, em geral, possui habilidade para escolher palavras, como um bom escritor. Mas, às vezes, escorrega. Vide ‘meto-lhe’ acima…”
A acusação, vaga e impertinente, não poderia ficar sem réplica. Investi, portanto, com meu habitual recurso ao português lusitano, onde o verbo meter é de uma plasticidade invejável. Lembrei-lhe que, em Lisboa, metem-se cartas, recados, saudades e até bom senso nas conversas — tudo sem o menor prurido. E que, no caso em tela, meter cabia com a graça torrencial que eu pretendia.
Ali, entre o alvorecer de notícias, uma uva madrugadora e um verbo vilipendiado, estabeleceu-se a mais doce das irrelevâncias: discutir o lugar de um verbo que, afinal, ninguém pediu, mas que se ofereceu à frase como quem pede guarida.
Essas pequenas desavenças são, no fundo, a argamassa invisível das boas amizades. O amigo que te corrige o verbo às sete da manhã é o mesmo que te enviará, sem aviso, um poema obscuro ou uma piada infame às dez da noite. Porque o que importa não é o verbo, nem a uva, nem sequer o clipping, mas a dança diária de palavras e pequenos atritos que faz da língua um território partilhado.
E assim seguimos: metendo, desmetendo e remetendo, desde muy temprano.
Novo colunista – Existem muitas pessoas que se propõem escrever e, enviam colaborações. Uma delas é o Pedro Santafé, amigo de longa data. Demorou até ele aceitar o desafio. É dessas figuras que habitam os bastidores dos gestos grandiosos e das pequenas revoluções cotidianas. Cronista atento das sutilezas do tempo, transforma paisagens, silêncios e entardeceres em matéria literária e política. Sua escrita, refinada e sóbria, recusa a autopromoção. Prefere a colher de pau, com a qual prepara geleias artesanais que distribui entre amigos. Também dedica-se a compor delicados arranjos com flora do cerrado, peças que equilibram leveza e harmonia. Desses gestos nasceu, sem estatuto ou cerimônia, a Confraria Gaivotas do Cerrado, coletivo de espíritos livres que cultivam a beleza de encontros regados a boa conversa, vinho e utopias. Pedro Santafé é, sobretudo, um nome que aparece onde é preciso ler o que não se disse — e registrar antes que se dissipe no ar rarefeito da memória. (RRB) Todos os textos de opinião são de responsabilidade dos autores.