Se depender do modelo previdenciário é proibido envelhecer!

Em dua coluna Rogério Bonato analisa a bomba-relógio da Previdência e aponta alguns prováveis culpados, além da incompetência administrativa

 Velhice com hora marcada

Poucos temas assustam tanto quanto a combinação explosiva entre velhice e desamparo. Não estamos mais falando apenas de aposentadoria, mas de um modelo de sociedade que empurra seus velhos para o esquecimento, como se fossem peças fora do sistema. O alerta veio até de Robert De Niro, que afirmou: “A velhice não chega com delicadeza, e quem a espera de mãos vazias sente o peso da dependência.” No Brasil, essa dependência não é apenas emocional ou física: é institucional. A previdência social que deveria assegurar uma velhice digna está frágil, corroída por décadas de má gestão, improvisos legislativos e equações populacionais que ignoram a realidade demográfica. A frase do saudoso Ziraldo — “a velhice me pegou de surpresa” — deveria ser a epígrafe dos relatórios do TCU sobre o tema. Mas a surpresa maior será quando os jovens de hoje descobrirem que seu futuro já foi gasto.

 

Natalidade em greve

O Brasil ainda insiste em se comportar como um país jovem, mesmo com a certidão de nascimento dizendo o contrário. A taxa de natalidade despencou de forma consistente nas últimas décadas: mulheres estão adiando (ou abrindo mão) da maternidade, famílias estão menores, e a estrutura social ainda não se adaptou. Sem crianças nascendo, não há contribuintes amanhã. A lógica é simples: menos bebês hoje, menos gente pagando INSS amanhã. Enquanto isso, governos fingem surpresa diante de algo anunciado há anos pelos demógrafos — e ignorado por todos. A pirâmide etária virou um trapézio invertido, sustentado por uma base murcha. O Brasil pode ter evitado o colapso educacional, mas está prestes a colapsar socialmente por não entender que sem infância não há previdência.

 

MEI: o bode na sala

Transformar o microempreendedor em vilão da previdência é uma covardia burocrática. O MEI — Microempreendedor Individual — nasceu como antídoto à informalidade, e por anos funcionou como a válvula de escape para milhões de brasileiros que, sem carteira assinada, passaram a emitir notas fiscais, acessar crédito e contribuir com o Estado. Com alíquotas reduzidas e direito a benefícios limitados, o MEI sempre foi um pacto pragmático: melhor pouco e formal do que nada e informal. No entanto, o sistema foi inchado, distorcido e transformado em abrigo para fraudes, omissões de faturamento e sonegação disfarçada. O MEI virou um elefante branco em cima da balança previdenciária — não por culpa do pequeno empreendedor, mas por ausência de regulação e vigilância do próprio Estado.

 

Muita gente não sabe

Pouca gente entende — e menos ainda se importa —, mas o MEI, por si só, não garante aposentadoria integral. Se o microempreendedor não realizar o recolhimento complementar ao INSS, receberá, no futuro, apenas um benefício assistencial de valor mínimo, vinculado à baixa renda. O que parece opção hoje se torna desamparo amanhã. Soma-se a isso o fato de que muitos dos que se registram como MEIs não têm funcionários, não geram empregos e, em boa parte, operam como empresas de fachada. É uma formalidade disfarçada de empreendedorismo, que garante ao indivíduo uma aparência legal, mas deixa de fora colaboradores, cônjuges e dependentes — todos sem rede de proteção. No fim, o sistema banca uma massa crescente de contribuintes que não sustentam ninguém além de si — e, muitas vezes, nem isso. A informalidade persiste, só que agora com CNPJ.

 

Repartição ou ruína?

O sistema brasileiro de previdência é baseado no modelo de repartição simples: os ativos sustentam os inativos. Funciona bem quando há muito mais trabalhadores do que aposentados, como em países com população jovem. Mas no Brasil, o desequilíbrio entre quem paga e quem recebe está se tornando estrutural. A relação entre contribuintes e beneficiários já é alarmante e tende a piorar. A cada ano, o número de aposentados cresce mais do que o de trabalhadores formais. Resultado? A conta fecha no vermelho. E a solução proposta pelos tecnocratas? Cortar benefícios, aumentar a idade mínima e, eventualmente, culpar o MEI. A lógica é perversa: transfere-se o ônus da má gestão para os ombros do contribuinte que mais precisa.

 

A previdência da feira livre

Toda dona de casa sabe: a despesa não pode ser maior que a receita. Mas Brasília vive numa realidade paralela. A previdência consome mais de 30% do orçamento federal, mesmo com sucessivas reformas. Enquanto isso, gastos supérfluos, isenções sem critério e fraudes impunes drenam recursos. Se a previdência fosse uma feira livre, já teria sido fechada por falta de troco. Mas não é. É um sistema que lida com a vida de milhões, com impactos diretos na dignidade humana. E segue sendo tratado com a leveza de uma lista de compras. Falta pragmatismo, sobra populismo. E, principalmente, falta o básico: contas que fecham.

 

O MEI como saída… provisória

Quando criado, o MEI era uma solução de curto prazo para um problema estrutural: a informalidade crônica. Funcionou, mas a solução virou rotina. Milhões se mantêm no regime mesmo quando já deveriam migrar para outras categorias. Com isso, temos milhares de “empresas” que faturam acima do teto permitido, mas continuam com CNPJ de MEI por conveniência — e omissão do Fisco. O MEI deixou de ser trampolim e virou zona de conforto. O risco não é apenas previdenciário: é institucional. Mantém-se artificialmente uma massa de contribuintes que, no futuro, exigirá benefícios incompatíveis com o que recolheu. E a conta, claro, ficará para o coletivo.

 

Reforma ou farsa tributária?

Fala-se muito em reforma tributária, mas pouco se fala da necessidade de reformar a cultura do contribuinte brasileiro. A informalidade ainda é vista como esperteza, a sonegação como mal necessário. O MEI, nesse cenário, virou o artifício predileto de quem quer faturar sem ser incomodado. Aumentar o teto de faturamento, como sugerem alguns, pode ser justo. Mas sem auditoria, sem fiscalização, será apenas mais um incentivo à dissimulação. Reforma tributária sem reforma moral é como trocar a embalagem do produto sem verificar se ainda está podre por dentro.

 

Tudo junto e misturado

A falta de educação financeira entre MEIs beira o trágico. Caixa da empresa mistura-se com despesas pessoais. Investimento é confundido com gasto. Lucro é gasto no mesmo mês. Resultado: quebradeira, endividamento e abandono. A informalidade não sai apenas do CNPJ — sai da mentalidade. E isso compromete a sustentabilidade do modelo, porque o MEI não se sustenta em boas intenções, mas em gestão real. A ausência de separação entre finanças pessoais e profissionais é mais que erro técnico: é sabotagem involuntária do próprio futuro.

 

Fuga do sistema

Os números não mentem: a taxa de mortalidade dos MEIs é altíssima. Em menos de dois anos, boa parte encerra as atividades. Outra parte migra para a informalidade ou simplesmente desaparece do radar. Isso cria uma espécie de buraco negro fiscal — uma massa invisível que já contribuiu com pouco e não contribuirá mais. A previdência fica com a obrigação de pagar, mas sem a entrada correspondente. É como abastecer um carro sabendo que o tanque está furado — e continuar acelerando, confiando que um posto aparecerá adiante.

 

O mundo também enruga

O Brasil não está sozinho nessa crise. Japão, Itália e Alemanha enfrentam colapsos similares. Até mesmo os Estados Unidos admitem que sua Social Security caminha para um buraco sem fundo. O problema é universal: o mundo está envelhecendo. Mas a resposta dos países desenvolvidos tem sido diferente. Investimento em tecnologia, incentivo à natalidade, revisão nos modelos de trabalho e previdência privada compulsória estão no cardápio de soluções. O Brasil, porém, continua a esperar que o milagre venha da próxima CPMF.

 

Made in USA

Nos Estados Unidos, a figura do “Sole Proprietorship” funciona como nosso MEI, mas com uma diferença brutal: a fiscalização. Lá, o contribuinte é responsável por declarar e pagar. E se mentir, o IRS (Receita Federal americana) aparece — rápido, frio e eficiente. Não há tolerância para “jeitinhos”. Isso explica por que o sistema previdenciário deles, embora também ameaçado, não faliu. Lá, fraude não é malandragem: é crime. Aqui, é piada de stand-up.

 

A previdência no divã

A previdência brasileira precisa de análise. Freud talvez diria que o sistema sofre de negação crônica: recusa-se a aceitar que envelheceu. Vive de saudosismo, lembra dos tempos de superávit, mas ignora que sua juventude passou. É preciso aceitar a nova realidade: população envelhecida, baixa natalidade e economia instável. Manter a estrutura atual é como insistir em usar calça de quando se tinha 18 anos. Não cabe mais.

 

Cultura do atalho

O brasileiro aprendeu a burlar o sistema antes mesmo de aprender a usar o sistema. Há quem simule invalidez, invente vínculos empregatícios e até declare tempo rural sem nunca ter pisado em barro. A burocracia, lenta e confusa, colabora. O resultado é um sistema previdenciário que premia quem mente bem e pune quem confia. A moral da história é cruel: honestidade sai caro.

 

Planejamento? Só na Finlândia

Enquanto países escandinavos debatem previdência com décadas de antecedência, o Brasil só fala no assunto quando o colapso já bate à porta. O Congresso trata a pauta com o mesmo zelo com que trata reformas ministeriais: tudo é adiado, esvaziado, negociado. Planejamento estratégico por aqui é lenda. E mesmo as propostas sérias são soterradas por lobbies, resistências sindicais e populismo fiscal.

 

O pesadelo do caixa eletrônico

Imagine um dia comum: o aposentado vai ao banco e vê no visor: “Benefício indisponível. Sistema em manutenção.” A falência da previdência pode parecer distópica — mas está no radar. Com mais de um terço do orçamento federal comprometido e um rombo crescente, a falência não é mais tabu: é uma possibilidade concreta. E se acontecer, não haverá consolo.

 

A reinvenção necessária

O Brasil precisa reinventar sua previdência — e isso começa por parar de empurrar o problema para a próxima legislatura. A solução exigirá coragem para rever privilégios, enfrentar fraudes, tributar com justiça e pensar previdência como política de Estado. Isso inclui incentivo à natalidade, educação previdenciária desde o ensino médio, e um novo pacto geracional. Não se trata de caridade com os velhos — mas de respeito com os que ainda virão. É assim que entramos em julho meus amigos: na outra metade do ano! Bom dia!

Rogério Bonato  escreve regularmente para o Almanaque Futuro