Quando um homem público consegue ser maior que os cargos que assumiu

A despedida de Dobrandino Gustavo da Silva nos remete ao pensamento sobre os políticos, amizade, humanidade e como as suas marcas serão duradouras. Leia na coluna de Rogério Bonato.

 Tarde bonita, notícia triste

Aceitei o convite para um passeio por Itaipu, organizado pelo setor de imprensa da usina, com direito a café com o diretor-geral brasileiro Enio Verri e, certamente, bons bate-papos com ele e velhos amigos. Seria uma tarde bem mais agradável não fosse a notícia que me alcançou minutos antes de embarcar no ônibus que faz o circuito na usina: o falecimento de Dobrandino Gustavo da Silva. Peço desculpas aos gentis colegas que organizaram o tour e o “afternoon tea”, mas usarei todo o espaço desta coluna para honrar um amigo.

 

O rio e a correnteza

Enquanto contemplava o majestoso Paranazão — desviado, concretado e represado — lembrei das águas que nos levam, ora à deriva, ora em curso calculado, e comecei a pincelar este texto. Quando cheguei a Foz, em 06 de setembro de 1980, há exatos 45 anos e quase um mês, a política local era um turbilhão. Nomes de peso giravam em torno do coronel Clóvis Cunha Vianna, prefeito nomeado havia mais de uma década. Mas uma figura, em especial, despontava como ventania: Dobrandino Gustavo da Silva.

 

Os relatos de um tempo

Seria fácil escrever que era catarinense das bandas de Urussanga, que chegou a Foz em 1975, suplente de vereador em 1977, eleito em 1983, primeiro prefeito eleito em 1986 após o longo hiato da Lei de Segurança Nacional, deputado estadual, prefeito outra vez em 1992 e a passagem pela Assembleia Legislativa. Mas isso é biografia, que muitos repetirão. Eu prefiro recordar o amigo: o convívio, as histórias, as lições que revelam o espírito de quem fez da política uma arte de humanidade.

 

Mestre em ousadia

Dobrandino foi professor de política, sem jamais se proclamar mestre. Não tinha cátedra, mas tinha esquina; não escrevia cartilhas, mas ensinava no cafezinho; não fazia discursos acadêmicos, mas sabia aconselhar na calçada. Lia nas entrelinhas do poder como poucos e, com paciência franciscana, ensinava que a política deveria aproximar, nunca afastar. Arrisco dizer: foi um sociólogo natural, sem abrir Marx, Weber ou Durkheim, mas aplicando cada teoria com precisão no trato com o povo de Foz. Ao lado de Zizo, seu eterno “Mano véio”, formava dupla imbatível na arte de articular.

 

O embate e a ofensiva

Acompanhei de perto a eleição de 1985, como diretor de telejornalismo da Televisão Naipi. Confesso: torcia por Tércio Albuquerque. Mas vi Dobrandino transformar voto a voto a apuração em espetáculo no Oeste Paraná Clube e no Floresta. Anos depois, perguntou-me: “Inácio, você alguma vez votou em mim?” Respondi, sem jeito: “Não, jamais.” Para ele, eu nunca fui Rogério, eu era o Inácio — e havia uma razão para isso.

 

O Diário da Cidade

No entremeio das águas, fundamos o Diário da Cidade — Paulo Mac Donald, Carlos Duso, Ney Botto Guimarães e eu. Ali nasceu o “galo birrento”, um cartum que bicava políticos sem piedade. Um dia, na Rua Rio Branco, Dobrandino me apontou e disse, em tom de deboche: “Esse aí é o galináceo.” Todos riram. Para não carregar o apelido sozinho, batizei a criatura: Galo Inácio. De apelido virou tradição carnavalesca e beneficente. Para a família Silva, eu nunca fui Rogério. Sempre fui Inácio.

 

No Palácio

Quem até pouco antes circulava de calça de tergal, camisa de algodão e sandálias Havaianas assumiu a prefeitura como destino, não como desafio. Eu, frequentador assíduo do gabinete, testemunhei sua habilidade de costurar soluções com leveza e humor. Dobrandino era um Odorico Paraguaçu em carne e osso, mas com personagens reais. Quem esquece o Babá, funcionário que, vez ou outra, embriagava-se e o desafiava em frente à Prefeitura? Da sacada, o prefeito bradava: “Babá, entra para trabalhar, senão mando te exonerar!” Cena hilária que presenciei mais de uma vez.

 

Bons tempos

Depois de tantos anos sem prefeitos eleitos, ver Dobrandino no comando era novidade. As escadarias do Palácio Cataratas amanheciam cheias de gente. Ele atendia a todos. À noite, no apartamento da Rua Santos Dumont, outro tanto o aguardava — e muitos ficavam para o jantar.

No mesmo período, remei com Letízia e o saudoso Aníbal Abbate Soley no lendário Primeirahora. Lembro das entrevistas ao lado de Selmo Aragão e da implicância de Dobrandino com minhas bermudas: “Selmo, esse cara vem trabalhar de calção, faça-me o favor.” Ria, mas dava o recado.

 

A Foz das ruas de pedra

Naqueles anos, os bairros eram de terra batida. No verão, poeira vermelha; na chuva, lama. Dobrandino enfrentou o problema com frentes de pavimentação talhando o basalto. Milhares participaram. Se houvesse reeleição, não teria adversário. Tanto que elegeu Álvaro Apolônio Neumann com facilidade, derrotando novamente Tércio, agora com apoio da Itaipu. Nesse mesmo embate, em outra canoa, ajudei a parir A Gazeta do Iguaçu.

 

Folha corrida

Não é o caso de listar, como em inventário, a criação da Guarda Municipal, a consolidação da Fundação Cultural, os três mandatos na Assembleia, o zelo ambiental ou os episódios folclóricos dignos de almanaque. Também não vale remexer nas águas revoltas do transporte coletivo ou nas polêmicas inevitáveis. O essencial é lembrar que Dobrandino, diante de cada circunstância, foi gigante quando a cidade precisou. Essa grandeza está menos nas obras materiais e mais na lembrança viva de quem o conheceu: um homem maior que os cargos que ocupou.

 

Grande lição

Há gestos que definem um homem público. Dobrandino teve sim a grandeza de fazer o que poucos fariam: abrir espaço às novas gerações, entregando-lhes a condução da cidade. Com simplicidade quase monástica, disse: “Deu para mim, agora é para os outros. Espero que saibam tratar bem desta bela senhora chamada Foz do Iguaçu.” Poderia permanecer em cena por muito tempo ainda, mas preferiu o retiro. E talvez este tenha sido seu ato mais nobre.

 

Conversas ao celular

Já idoso, saúde frágil, mas sangue sempre quente. Em 2024, quando Sâmis se lançou candidato, o maior desafio foi segurar o pai em casa. Zenaide cuidava, os filhos insistiam, mas Dobrandino queria estar nas ruas. À noite, em ligações, dizia-me: “Inácio, estou com bolhas nos dedos de tanto digitar no celular.” A política era seu oxigênio.

 

Amigo dos amigos

Dobrandino foi o político mais influente de Foz nos últimos 50 anos. Mas foi também, e talvez sobretudo, amigo dos amigos. Podia acumular adversários, mas inimigos, nunca. Escutava, aconselhava, acolhia. Sabia transformar conflito em convivência — dom de raros.

Não conheço quem não gostasse dele. Era impossível não gostar. Sua simpatia espontânea, o humor inesperado e a humildade com que tratava a todos — do mais poderoso ao mais simples — tornavam sua presença sempre bem-vinda. Dobrandino deixou como maior marca não apenas o que fez, mas o que fez sentir: a certeza de que se estava diante de alguém que realmente se importava.

 

Cidadão Honorário

Em 2022, quando recebeu o título de Cidadão Honorário de Foz, perguntei a um vereador: “Não há algo maior? Dobrandino é muito mais do que honorário.” Para mim, era pleonasmo: ele já era a própria cidade. Ao telefone, emocionado, confessou: “Inácio, eu nem acredito que mereço tanto.” Humildade era seu sobrenome oculto. Talvez sua maior vitória tenha sido essa: ser grande permanecendo simples.

 

Epílogo

Nesta quarta-feira, 24 de setembro de 2025, o coração de Dobrandino silenciou. Mas sua voz — firme, serena e generosa — continuará ecoando como correnteza mansa, que segue adiante. Ele está nas ruas de pedra que ajudou a abrir, nas histórias contadas à mesa, na lembrança de cada amigo que cultivou. Para mim, fica a saudade imensa, e a gratidão de ter aprendido com ele que a política, antes de ser disputa, é sobretudo um ato de humanidade.

Rogério Bonato escreve com exclusividade ao Almanaque Futuro