Por Rogério Romano Bonato e Eliane Luiza Schaefer
Estava trocando os óculos, com o pensamento já navegando rumo ao fim da semana, quando a notícia me parou. Daquelas que chegam sem anúncio, sem batida na porta. Me vi, de repente, entre a tecla do computador e a vontade de pegar o telefone. Pensei em amigos, nas razões do ocorrido — como se houvesse razão que bastasse. Mas foi a memória, essa senhora caprichosa, que me tomou pela mão. E ali estavam as lembranças. Muitas. Quase todas felizes. Era sempre assim quando o pensamento encontrava dona Philomena Morelo Raffagnin e sua prole de nomes começados por N: Névio, Nelci, Neuso, Nanci, Nivaldo, Nilson, Nilton, Neumara. Oito nomes que se tornaram parte do cotidiano da cidade — e da minha própria história.
Tive o privilégio de conhecer essa família há mais de 40 anos. E talvez por isso, me concedo o direito — e o dever — de escrever o que muitos sentem, mas talvez não consigam dizer. Porque em momentos assim, quando o silêncio nos abraça com força, resta-nos lembrar. E escrever.
Deu vontade de pintar, e, garanto, faria um quadro. Mas não tenho todas as tintas necessárias para ilustrar uma vida como a de dona Philó. Faltaria cor para tanto afeto, tanto exemplo, tanta firmeza. Faltaria luz para a sua energia, e sombra para desenhar a sua sabedoria. Por isso, peço licença: não farei aqui uma biografia, pois isso pertence aos arquivos das famílias grandes. Direi apenas que ela era 15 anos mais jovem que uma de suas irmãs, a nossa querida Foz do Iguaçu — cidade que tanto amava e à qual dedicou palavras, gestos, silêncio devoto e, ambas cresceram com força, coragem e beleza própria.
Entre tantas lembranças, uma me acompanha com brilho especial. Corria o ano de 1990. Ao estacionar meu carro, um jato d’água acertou o para-brisa. Assustei-me, claro. E logo vi: era ela, dona Philomena, ali na calçada do edifício onde morava, com vassoura na mão, ensinando o Eduíno, porteiro do prédio, como se varre, como se lava — como se cuida. Ele com a mangueira, ela com a vassoura, diante de todos. Ela não mandava fazer. Mostrava como se fazia.
Parece pouco. Não é. Ali estava a essência de uma mulher que fazia questão de tudo bem feito, à sua maneira. Era mestra no rigor das pequenas coisas, porque sabia que é nelas que se constrói o grande. E assim viveu: como quem ensina com o gesto, mais que com a voz.
Dona Philomena foi mais que matriarca. Foi soberana de um império que nasceu de uma churrascaria e se espraiou pelo mundo do turismo, da hospitalidade, da boa mesa. Quantos estrangeiros sentaram-se à sua mesa? Quantas culturas brindaram à vida com o calor de seu acolhimento? Seu nome talvez não esteja nos livros didáticos, mas está gravado nos relatos de quem passou por aqui e conheceu o sabor da acolhida.
Hoje, a cidade se curva diante dessa despedida. Uma rainha nos deixa — sem trono, sem coroa, mas com um legado tão sólido quanto as pedras de basalto que formam nossa terra. Philomena foi dessas mulheres que não passam: permanecem.
Aos filhos, netos, noras, genros e amigos, o meu abraço mais sincero. E a certeza: não há partida quando o amor fica. E dona Philó ficará. Em cada canto bem varrido. Em cada mesa posta com zelo. Em cada lição que não precisa ser dita para ser eterna.