Pepe Mujica: o último homem simples que não se deixou seduzir nem corromper pelo poder
Por Gaudêncio Penaforte
Morreu José “Pepe” Mujica, ex-presidente do Uruguai, ícone da esquerda latino-americana e símbolo raro de coerência entre discurso e prática. Beatificado em vida por seus admiradores, respeitado até pelos adversários, Pepe se vai no instante preciso em que seu exemplo fará mais falta. Um tempo em que os gestos pequenos perderam valor e as palavras grandes perderam vergonha.
No governo, recusou palácios e mordomias. Morava na chácara modesta da Rincón del Cerro, dividindo o mate com a companheira Lucía Topolansky, enquanto doava a maior parte do salário presidencial para programas sociais. Era um homem de vinco permanente na roupa e brilho opaco no sapato. Dirigia seu Fusca azul como quem se sabia mais à vontade com o cheiro de terra do que com a pompa do protocolo.
Mas Mujica não era um ingênuo folclórico, como quiseram reduzir alguns caricaturistas do poder. Sabia a crueza da política. Navegava com firmeza entre interesses, media contradições e entendia a força corrosiva do poder. Por isso, mais do que humildade estética, o que oferecia era uma ética de sobriedade: governar sem se enamorar da cadeira, fazer política sem transformar a si mesmo em personagem de vaidade.
Mujica não foi um teórico. Não escreveu tratados sobre o socialismo do século XXI, nem desejou se tornar referência continental de nada. Vinha do campo e da luta armada, de um Uruguai ferido pelas ditaduras e pelos anos de chumbo. Sobreviveu a torturas, confinamentos e à solidão de uma cela minúscula por mais de uma década. De lá saiu com a alma inteira e a obstinação de quem não queria revanche, mas construir o futuro democrático do seu país.
O que verdadeiramente marca a figura de Mujica não é o seu passado guerrilheiro, mas a sua centralidade na transição democrática do Cone Sul. Em um continente que ainda sentia as cicatrizes das ditaduras militares, ele se tornou um farol de uma nova forma de fazer política. Mujica não apenas foi protagonista da democracia uruguaia pós-ditadura, mas representou, de forma vívida, um dos maiores exemplos de reconstrução e reinvenção política — não como ruptura, mas como continuidade de um projeto democrático e popular. Sua presença nas esferas de poder foi o ápice de uma transição que desafiava os espectros autoritários e, ao mesmo tempo, sabia preservar a dignidade e o compromisso com os direitos humanos.
Nos últimos anos, Mujica se converteu numa espécie de oráculo regional. Visitado, consultado, escutado por presidentes, ex-presidentes e líderes de todos os matizes, que enxergavam nele não apenas um conselheiro político, mas uma consciência ética. Não escondeu a doença nem se retirou de cena. Continuou a falar, advertir e aconselhar. Seu estoicismo diante da morte iminente chega a ser comovente. Valente, destemido e sereno, enfrentou o ocaso como viveu a vida: com desprendimento e dignidade.
Sua figura se consagrou como um herói da integração regional, não apenas por seu legado dentro do Uruguai, mas também por seu compromisso com uma América Latina unificada e solidária. Mujica entendeu, com clareza, que o futuro da região dependia da cooperação e do respeito mútuo entre os países, algo que sempre procurou reforçar. Ele foi uma voz essencial nas discussões sobre o Mercosul, a ALBA e outros mecanismos de integração, defendendo um bloco regional forte, capaz de dialogar com o mundo sem perder sua identidade e soberania.
Seus ideais, longe de se limitarem ao campo da esquerda, transcendiam qualquer rótulo. Mujica representava a possibilidade de um novo modo de fazer política, um que não se alicerçava em retóricas radicais, mas na simplicidade do diálogo e da verdade. Sua postura política transcendeu os marcos ideológicos e fez dele uma figura universal, em grande parte por seu vínculo com a construção de um futuro mais justo para todos, independentemente da orientação política. Tentativas de reduzi-lo a um simples amuleto da esquerda ou de uma linhagem ideológica seriam, no mínimo, apequenar sua imagem e seu legado. Como um Gandhi sul-americano, Mujica se mostrou capaz de inspirar gerações sem jamais se perder em promessas vazias ou gestos teatrais.
Sua relação com Luiz Inácio Lula da Silva foi uma das mais genuínas expressões de amizade política e respeito mútuo. Ambos, vindos de trajetórias distintas, mas com um compromisso em comum: a transformação social de seus países e de seus povos. O encontro entre esses dois homens não foi apenas uma troca de ideias, mas um reflexo das possibilidades que emergiram do fim das ditaduras na América Latina. A cumplicidade entre os dois, em especial nas questões regionais e na defesa das democracias, se mostrou ainda mais forte com o tempo, consolidando uma relação que nunca foi apenas política, mas profundamente humana. A vitória recente do candidato de Mujica nas eleições presidenciais uruguaias, Yamandú Orsi, foi um gesto simbólico de continuidade — de um ciclo que se fecha com a certeza de que, apesar de sua partida, o legado de Pepe permanece enraizado no tecido social e político do país.
É vertiginoso que, em menos de três semanas, a América Latina tenha se despedido de dois de seus maiores líderes humanistas: o Papa Francisco e José Mujica. Um no altar de Pedro, outro nas alamedas de Montevidéu. Sem nenhum favor nem exagero, Pepe merece lugar no panteão dos grandes estadistas de nossa era. Um homem que, como Gandhi e Nelson Mandela, soube converter sofrimento em sabedoria, renúncia em autoridade moral e simplicidade em força política. Sua grandeza não se mede pelo cargo que ocupou, mas pelo caráter com que o exerceu. Um estadista sem palácio, sem trono, mas com a legitimidade rara de quem atravessa o tempo como referência ética para povos e governos.
Pepe Mujica deixa lições fundamentais. Que a política deve servir às pessoas, e não o contrário. Que “os homens passam, as causas permanecem”, como não se cansava de repetir. Que o poder não transforma ninguém — apenas revela. Que nenhuma convicção vale o sacrifício da ternura. Que é possível ser austero sem ser amargo, combativo sem ser rancoroso, popular sem ser populista.
Pepe acreditava na bondade como exercício político. Num continente cansado de líderes obcecados por eternidade, ensinou o valor de saber a hora de sair de cena. Governou com simplicidade e deixou o governo sem saudade do cargo.
Talvez o mundo, em sua fase mais ruidosa e acelerada, não se dê conta do homem que perde. Mas a história, que demora mais, saberá escrever, com o tempo certo, que José Mujica foi o último grande homem simples da política latino-americana que não se deixou seduzir nem corromper pelo poder.
Adeus, Pepe. Vá em paz, sabendo que sua ausência pesa, porque sua presença sempre foi leve.
Gaudêncio Penaforte, sociólogo e analista político, especializado em temas de integração regional e políticas públicas. Escreve com exclusividade para o Almanaque Futuro.