O testamento de Kongjian Yu contra o negacionismo
A morte do criador das “cidades esponjas”, simboliza um testamento contra a ignorância e em favor da integração entre natureza e urbanismo.
Luiz Henrique Dias, arquiteto e urbanista
Paulino Motter, jornalista e gestor público
A morte trágica do arquiteto chinês Kongjian Yu, em acidente aéreo no município de Aquidauana, na região do Pantanal de Mato Grosso do Sul, é uma perda de dimensão global. Professor da Universidade de Pequim e criador do revolucionário conceito de “cidades esponjas”, ele deixa um legado que transcende a arquitetura: uma visão integrada de como os espaços urbanos podem dialogar com a natureza e, assim, preparar-se para os efeitos cada vez mais extremos da mudança climática.
O acaso quis que essa tragédia ocorresse no mesmo dia em que o presidente norte-americano Donald Trump, em discurso na Assembleia Geral da ONU, desdenhou em tom jocoso o consenso científico sobre o aquecimento global, chamando-o de “o maior con job da história”. É impossível não ver aí uma ironia cruel: enquanto Trump desmoraliza a ciência, Kongjian Yu, pela força de sua obra, reafirmava na prática que a inteligência humana é capaz de oferecer soluções sustentáveis para a vida coletiva.
Vivemos uma década decisiva para o planeta. Não faltam estudos contundentes e de amplo reconhecimento por nações e comunidades científicas. Os tempos são de mitigação, inovação e mudanças de rumos — exatamente o que Yu propunha em seus projetos, seminários e aulas. Como apresentou em eventos internacionais, como a Bienal de Arquitetura, e como acreditou ao longo de toda a sua carreira, o caminho possível passa por integrar cidade e natureza, ciência e sabedoria ancestral.
Yu provou, em dezenas de projetos urbanos na China e em outros países, que a água pode ser tratada não como inimiga, mas como aliada. Inspirou-se nos ecossistemas naturais, como várzeas, pântanos e manguezais, para redesenhar metrópoles capazes de absorver, reter e reutilizar a água das chuvas. Sua ideia das cidades esponjas não é uma metáfora poética apenas: é uma resposta concreta a enchentes devastadoras e secas prolongadas. Graças a Yu, pelo menos 70 cidades no mundo já são “esponja” o suficiente para absorver volumes de água equivalentes à inundação que devastou Porto Alegre em 2024.
Há uma dimensão simbólica particularmente pungente em o acidente ter ocorrido justamente no Pantanal brasileiro, o maior alagado contínuo do planeta. Ali, a alternância entre cheias e secas construiu um dos ecossistemas mais ricos do mundo, que funciona, por si só, como uma gigantesca esponja natural. Mas essa mesma região sofre ameaças graves: ocupações ilegais, expansão desordenada da agropecuária, queimadas criminosas e falta de políticas públicas consistentes para a sua preservação. O Pantanal, como lembrou recentemente uma série de reportagens exibida pelo programa Fantástico, é um espelho da urgência ambiental do Brasil.
Foi justamente em uma série especial do Fantástico, intitulada “O Código Chinês”, exibida em agosto deste ano, que muitos brasileiros tiveram contato mais profundo com a obra de Kongjian Yu. Produzida pelo repórter Felipe Santana, a série explorou inovações e curiosidades da China contemporânea — dos carros voadores e transporte autônomo às cidades inteligentes e à robótica. No último episódio, exibido em 31 de agosto, o tema central foi a sustentabilidade, com destaque absoluto para o conceito das cidades esponjas. Logo na abertura, Felipe Santana sublinhou que Yu já havia realizado mais de mil projetos em 250 cidades, transformando enchentes em solução e devolvendo espaço às águas como forma de prevenir desastres climáticos.
Na reportagem, o arquiteto conduziu o público por parques chineses concebidos para absorver a água das chuvas, mostrou como tradições ancestrais inspiraram suas soluções urbanas e, ao mesmo tempo, ofereceu exemplos práticos de como essa sabedoria poderia ser aplicada em metrópoles de todo o mundo — inclusive no Brasil. O episódio evidenciou a coerência entre a biografia de Yu, que quase morreu afogado na infância, e sua filosofia: “a água não é inimiga”. Uma mensagem simples e poderosa, que ressoou ainda mais com sua trágica partida no coração de um dos maiores ecossistemas aquáticos do planeta.
Sua morte, em território brasileiro, deve ser lida como um testamento involuntário. Ela nos recorda que o Pantanal não é apenas uma paisagem exuberante ou uma reserva de biodiversidade, mas também um sistema vital de regulação hídrica. Se quisermos honrar a memória de Kongjian Yu, precisamos compreender que a luta pela preservação do Pantanal é também a luta pela sobrevivência das cidades, que, cada vez mais, enfrentarão extremos de calor, secas e inundações.
Quando os líderes mundiais se reunirem na COP30, não poderão ignorar a lição. O legado de Kongjian Yu, interrompido de forma abrupta nos céus do Pantanal, ressoa como uma resposta serena e firme ao negacionismo ruidoso. Enquanto uns zombam da ciência, ele nos deixa um mapa de futuro: cidades que respiram, absorvem, devolvem à natureza o que dela recebem.
Kongjian Yu morreu, mas suas cidades esponjas continuarão a nos ensinar que a arquitetura não é apenas arte e técnica — é, acima de tudo, esperança.