O país que alimenta o mundo e envenena seu povo; alimento bom custa caro — e a conta vai parar no hospital
Com olhar crítico, Rogério Romano Bonato revela os paradoxos entre consumo, saúde pública e uma indústria alimentícia pouco fiscalizada; a incoerência entre o agronegócio de exportação e a dificuldade do brasileiro em acessar alimentos saudáveis.

Para pensar no fim de semana
Bom dia ao leitor que resiste — entre a bruma do frio e o calor das notícias. Hoje vamos nos dar o luxo de respirar, saindo da BR 469, da pressão do tarifaço trumpista e das eleições que já ensaiam o samba de 2026. A pauta de hoje começa na geladeira, passa pelo açougue, cruzou o supermercado e nasceu na lavoura. É o que comemos. É o que pagamos caro, quando deveria ser barato. A alimentação do brasileiro virou armadilha: industrializada, embutida, empacotada, e às vezes, envenenada pela pressa, pelos conservantes e pelos hormônios de crescimento precoce. Se antes a mesa era fartura, hoje virou campo minado — e o prato nosso de cada dia anda levando mais gente para os corredores dos hospitais do que para o sossego da rede depois do almoço.
Somos o que comemos
O consumo é livre, mas na imensa lista de produtos que usamos no dia a dia, sofremos com a necessidade de escolher pelo preço, ou o que cabe no nosso bolso. Em razão disso, os brasileiros acabam se alimentando mal, porque os produtos saudáveis custam três ou quatro vezes o valor da maioria dos alimentos que há em uma gôndola de supermercado. A vida se torna muito complicada para uma pessoa que sofre com a lactose ou o gluten, ou precisa repor vitaminas em decorrência de uma cirurgia, dieta contra a diabetes, ou ocorrências que aumentam vertiginosamente na vida moderna. E mesmo pagando preços altos, precisa cuidar para não cair em armadilhas, pois os rótulos muitas vezes são enganosos, e nem todo mundo leva uma lupa pra ler as letras minúsculas que atestam o produto. Por exemplo, a frase “pode conter lactose” beira o fraudulento. Como o fabricante não atesta se há ou não a influência da lactose. É como se existisse algo “mais ou menos” honesto. O fato é que a honestidade deve ser pela, porque se não for, não é honesta.
Somos o que comemos — e o que conseguimos pagar
A liberdade de consumo é relativa: o carrinho do supermercado obedece mais ao bolso do que ao paladar ou à consciência alimentar. O brasileiro médio tem que escolher entre o que quer e o que pode. Produtos saudáveis, sem glúten, sem lactose, orgânicos ou naturais, custam o triplo do que se encontra nas gôndolas comuns. Resultado: come-se mal, adoece-se mais. E quem precisa de dieta especial por cirurgia, diabetes ou intolerâncias alimentares encontra uma barreira econômica para sobreviver — literalmente. O país que planta para o mundo ainda impõe ao seu povo a dureza de comprar saúde por quilo — e a preços impraticáveis.
A honestidade também deveria ser ingrediente
Mesmo quando se paga caro, o consumidor precisa de atenção redobrada: os rótulos de alimentos, com letras mínimas e linguagem ambígua, viraram um campo de disfarces. Expressões como “pode conter lactose” beiram o engodo: afinal, ou contém ou não contém. É o tipo de frase que insinua uma verdade parcial — e verdade pela metade é mentira inteira. A honestidade, nesse mercado, também deveria ser ingrediente básico, mas anda desaparecendo da fórmula. Quem tem restrições alimentares não pode depender da fé cega em embalagens coloridas: precisa quase de um laboratório portátil ou, no mínimo, de uma lupa. Falta clareza, sobra marketing.
A medicina adverte, mas, e, daí?
Certa ocasião, um médico e amigo advertiu: não permita que suas filhas, esposa e mão comam a carne do frango. Ela possui tantos hormônios que isso é prejudicial especialmente às mulheres. Aí pensamos: mas o mundo compra o frango brasileiro, ele é exportado para todos os continentes. Os produtores garantem que no processo de engorda, não são utilizados hormônios de crescimento que sejam nocivos à saúde humana. A legislação brasileira proíbe a administração de substâncias com efeitos hormonais na produção de aves. Dizem que o rápido crescimento dos frangos é resultado de melhoramento genético, nutrição adequada e manejo adequado. Mas quem garante que não há presença de toxinas em rações, ou se elas são contaminadas com fungos, ou utilizam elementos como o de arsênico na alimentação, que é um produto químico tóxico? E será que isso é plenamente fiscalizado? E, sabemos, não acontece apenas com o frango, mas com o gado e até com peixes criados em tanques; ocorre também nas lavouras com os pesticidas. Os médicos indicam os produtos saudáveis, contraindicam os prejudiciais, mas na hora do paciente comprar, será que possui recursos? O que há é uma falta de sintonia entre o consumo e a saúde pública e o Brasil precisa avançar nesse assunto.
A medicina adverte, mas… e daí?
“Não deixe suas filhas comerem carne de frango”, disse um médico experiente a este colunista, num alerta que não saiu da memória. Segundo ele, o consumo recorrente, especialmente por mulheres, traz riscos pela quantidade de hormônios presentes. Mas aí vem a perplexidade: o Brasil é campeão na exportação de frango, vendendo para todos os continentes. E os produtores garantem: não há hormônios no processo. A lei brasileira proíbe. O crescimento acelerado? É culpa — ou mérito — da genética, da ração e do manejo técnico. A dúvida, no entanto, permanece: quem fiscaliza isso de fato? E quem assegura que as rações não estão contaminadas com fungos ou arsênico, por exemplo? Entre a garantia no rótulo e o que chega ao prato, há uma travessia turva.
Saúde pública sem sintonia com a gôndola
A advertência médica é quase um refrão: “evite processados, corte embutidos, prefira naturais.” Mas na hora da compra, quem consegue pagar por tudo isso? A medicina orienta com base na saúde, mas o consumo obedece à economia. Falta sintonia entre a cartilha dos hospitais e a realidade dos supermercados. E não se trata só do frango: a dúvida se espalha pelos bois, pelos peixes de cativeiro, pelas hortaliças regadas com pesticidas. A saúde pública precisa avançar para além dos consultórios e considerar que a maioria da população vive entre o que pode e o que encontra. Comer bem no Brasil, hoje, é um luxo — ou um desafio quase clínico.
Especialistas
A população com restrições na alimentação aumenta vertiginosamente. Segundo o estudo, isso não acontece por questões congênitas e sim pelo envenenamento ao longo da vida, pela ingestão de produtos cujos conservantes não combinam com as partes do corpo humano. E, hoje, essas pessoas cuja ingestão de alimentos é muito regulada, se tornaram fiscais e apontam uma realidade caótica: onde comer uma fatia de bolo sem lactose, sem gluten, por exemplo? E quem fornece esses produtos em uma confeitaria diz a verdade? Uma padaria que se propõe a fornecer produtos especiais precisar manter um processo contínuo de descontaminação, sem um único traço que contrarie as fórmulas; precisam manter cozinhas lacradas, câmaras especiais de armazenamento e, separar a produção até nos locais de venda. Aí, a balconista, sem o devido conhecimento, serve o produto especial, com a mesma espátula dos demais e o que adianta? O mesmo ocorre em todo o fornecimento de alimentos. Os usuários estão se tornando de longe mais habilitados que os ficais da vigilância sanitária. E, como fazer durante uma viagem de carro, de Foz até Curitiba? Segundo uma informação, não há um único estabelecimento que atenda celíacos, ou portadores de restrições alimentares. A saída é levar marmita. No entanto, quase todos vendem bebidas alcoólica, contrariando uma Lei que deveria ser rígida. Então, se não conseguem fiscalizar isso, o que dizer da qualidade dos alimentos.
Especialistas de sobrevivência
O número de pessoas com restrições alimentares não para de crescer — não por genética, mas por décadas de ingestão de substâncias impróprias ao corpo humano. Conservantes, corantes e aditivos fazem do prato um laboratório e, da digestão, uma roleta. Hoje, celíacos, intolerantes à lactose e diabéticos vivem em alerta constante, viraram fiscais involuntários. Comer uma fatia de bolo “sem isso e sem aquilo” virou uma façanha. E confiar na padaria da esquina exige fé e coragem. A confeitaria que se propõe a oferecer alimentos especiais precisa seguir protocolos quase hospitalares: áreas isoladas, utensílios exclusivos, armazenamento diferenciado. Mas tudo pode ruir com uma simples espátula mal lavada — ou mal informada.
Viajar com marmita, beber com licença
Entre Foz e Curitiba, uma viagem simples se torna desafiadora para quem precisa de alimentação controlada. Segundo especialistas, não há sequer um estabelecimento plenamente apto a atender celíacos ao longo do percurso. A saída? Levar marmita. É o Brasil moderno: o país do agronegócio, da exportação de alimentos, mas onde comer com segurança virou privilégio. Enquanto isso, quase todos os postos de estrada vendem bebida alcoólica livremente — em afronta à legislação. Se nem isso conseguem fiscalizar, o que dizer da higienização da chapa que grelha o hambúrguer “sem glúten”? Falta seriedade no trato com a alimentação especial — e sobra improviso onde deveria haver norma.
“Lá vem o chato”
Na infância, meu primo Henry era conhecido como o chato da família. Recusava carne, criticava o leite, examinava o prato como quem lê bula de remédio. Dizia-se vegano antes mesmo da palavra virar moda. Nós, moleques, zombávamos: “deve se alimentar de vento e sol”. Henry morreu num acidente, e jamais saberemos se sua dieta o levaria longe. Mas a lembrança volta toda vez que vejo alguém sendo tachado de exigente por querer apenas comer com segurança. No Brasil de hoje, qualquer um que se recuse a ingerir venenos rotulados como alimento ganha o rótulo de chato. É sintomático. O desafio alimentar se tornou tão grave que quem cuida do que come vira exceção. A sociedade precisa, urgentemente, repensar quem é o exagerado nessa história.
Uma questão de política pública
Se o cidadão não se alimenta bem, a conta chega em outro balcão: o da Saúde Pública. As filas nas UBS e UPAs não se formam apenas por acidentes ou violência urbana, mas também por má nutrição, imunidade baixa, doenças metabólicas, cânceres silenciosos. Alimentar-se mal não é só uma escolha: é consequência de um sistema que favorece o que mata lentamente. Pessoas bem nutridas adoecem menos, se recuperam mais rápido e exigem menos do Estado. A prevenção começa no campo, passa pelo supermercado e termina no prato. É um ciclo. Só que, no Brasil, ainda tratamos a alimentação como assunto privado — e não como política pública urgente.
Aprendizado com quem vive mais
Os japoneses de Okinawa, os italianos da Calábria e até os agricultores da Serra Gaúcha têm algo em comum: vivem muito, e bem. A receita? Dieta sem ultraprocessados, rotina ativa e ausência de modismos. Lá, o frango ainda cisca o terreiro, o milho vem da roça, o leite sai da vaca — sem aditivos, sem conservantes, sem propaganda. São povos que resistiram à sedução da comida enlatada e do fast-food. Talvez seja utopia imaginar um Brasil ruralizado outra vez, mas não é impossível buscar equilíbrio. Precisamos resgatar hábitos bons com a mesma urgência com que largamos os ruins. Comer bem não é luxo — é sobrevivência com dignidade.
Quando o veneno é subsidiado
Enquanto o Brasil subsidia fertilizantes químicos, rações com aditivos e pesticidas de largo espectro, o agricultor familiar que planta orgânicos luta para manter o pé na terra — e o produto na feira. A conta é simples: comer mal custa menos porque o Estado ajuda. Comer bem custa caro porque falta incentivo. A indústria alimentícia, por sua vez, opera com marketing de precisão, embalagens coloridas e promessas ilusórias. Tudo isso sob o silêncio de agências reguladoras lenientes ou burocráticas demais para agir. O resultado é um paradoxo: o país que alimenta o mundo envenena a própria população com lentidão estatal e apetite industrial. Falta coragem para fazer da alimentação saudável uma política nacional.
Para encerrar e, finalmente, pensar
Fica aqui um convite simples para o final de semana: observe o que vai ao prato. Experimente sair do automático. Pode até fazer o churrasquinho de sempre — mas repare na origem da carne, no tempero, no embutido da farofa. Escapar das armadilhas da alimentação moderna é mais difícil do que parece. Mas vale a tentativa. Afinal, a meta mais ambiciosa que podemos ter é prolongar a vida — a nossa e a dos nossos. E isso começa com escolhas pequenas, diárias. Que tal um caldo quente no friozinho, com ingredientes de verdade, como faziam nossas avós? Um bom descanso, reflexão à mesa, e até terça-feira. Sempre de barriga cheia — de lucidez.
Rogério Bonato escreve para o Almanaque Futuro