Maio, o mês fragilizado pela memória basáltica
Em sua coluna Rogério Bonato escreve sobre a ausência e como pessoas importantes deixam de ser lembradas, mesmo fundamentais na memória coletiva.
Cegou chegando
Estreamos maio com uma brisa agradável, com jeitinho de inverno. Cães e gatos já procuram frestas ensolaradas para lagartear. Há neblina, e, um orvalho mais pesado nas folhagens. Nas tardinhas a fumaça de fogões se espalha ao redor das residências e os varais estão repletos de casacos, blusas de lã, meias e calças saídas do armário; para lá vão as bermudas e camisetas. Nesta época os quintais estão impregnados de naftalina das cobertas e roupas estendidas. Em Foz isso é muito marcante, porque parece haver apenas duas estações. No frio nos encolhemos para se encaixar nos pensamentos. Vai lá saber a razão? Maio é para mim, o mês da saudade. Isso sim, tem explicação.
Inevitável percurso
Não possuo mais um aparelho telefônico. O que havia na sala foi parar na caixa das inutilidades, como a vitrola, e outra porção de objetos. Alguns fazem parte do meu sacrossanto relicário, como a máquina de escrever Olivetti Lettera 32, ainda no estojo, aberto apenas para cheirar a saudade. E a saudade cheira? Mais do que isso, ela exala o perfume que há no passado; vezes não queremos lembrá-lo, por dor, melancolia e outros variáveis incômodos. Mas é melhor recordar, pois surgirá a alegria dos retratos, filmes e vídeos; nas dedicatórias dos livros e mimos. Uma tarde dessas fiz uma pausa para o café, com direito ao bolinho de chuva e passava uma reprise de novela; contei os mortos do elenco. E, é assim em nossas vidas, porque o tempo é implacável e vai levando os que nos cercam. Inevitavelmente recordamos.
O curso e as imagens
Este texto foi inspirado nas recentes postagens do amigo Beto Maciel na redes sociais, onde faz um passeio pela histórias que são só dele, mas nos remetem a tudo o que hoje também nos pertence, nesta acolhedora cidade. E, em leituras assim, entendemos a distorção memorial, porque a ruas não são as mesmas, o que era mato virou bairro, edifícios históricos desapareceram e deram lugar a estacionamentos e o que resiste, está sob a ameaça dessas transformações. Como empreender tanta fragilidade nesse desprezo pela memória?
Rodas de amigos
Fiz um exercício: voltei ao tempo, lembrando a enorme mesa que se formava aos sábados pela manhã no reduto conhecido como “Garganta do Diabo”, a “Boca Maldita” de Foz do Iguaçu. O bar pertencia ao japonês com sobrenome alemão, o Sakuro Shinidt, e ficava no cruzamento das ruas Benjamin Constant e Belarmino de Mendonça. Umas trinta pessoas tinham lugar cativo na confraria. Transpondo os quarenta anos, as figuras foram desaparecendo e, caso a mesa fosse hoje montada, duas, três, no máximo cinco confrades estariam nela. Sou um deles. Nem o bar existe mais, muito menos o púlpito usado para os discursos. A lembrar, a “garganta” foi inaugurada por ninguém menos que Adolfo Peres Esquivel, no ano em que foi escolhido Nobel da Paz. Creiam nisso.
O mundo roda
Além de Esquivel, ilustres como Geraldo Vandré, Ziraldo, Carlos Lessa, Fernando Gabeira, outros escritores, jornalistas influentes como o Laurentino Gomes, e quase todos os políticos de nossa geração, esquentaram as cadeiras de plástico daquele “boteco”, com destaque para o Jaime Lerner, Affonso Camargo Neto, e, Roberto Requião. Concediam entrevistas lá de modo que os jornalistas não precisassem se deslocar do covil. Mas o que valia mesmo era o encontro dos amigos, os “reles mortais fronteiriços” como dizia o Miguel Gerson Aires dos Santos. Trágica a memória desprovida dos arquivos e documentos, que não sejam as lembranças dos vivos. Por isso, artigos como os do Beto causam o deleite em lembrar e fazem chorar: o saudosismo é sentimento importante e vitalício.
E cadê a memória?
“E por falar em saudade”, tranquilamente escreveria uma lista de nomes que suplantaria o espaço da página. Gente que amou esta cidade incondicionalmente, com as mais belas licenças poéticas e declarações e com o devido registro, seja em páginas de livros e jornais. Se me pedissem apenas dois nomes, na intenção imortalizar toda essa devoção e honrar a memória de Foz e dos seus filhos, com o devido merecimento, não levaria um segundo para responder: Francisco de Alencar e Fábio Campana, respectivamente os maiores jornalistas em seus mundos.
O velho Chico
Francisco de Alencar foi uma das primeiras pessoas que conheci ao chegar em Foz, em 1980. Ele formava o tripé da comunicação, ou seja, era o cara das letras, da escrita e redação de jornal. As outras duas pernas eram o Toninho Cirilo no Rádio e Alvir Preisner na Televisão. Na ordem da importância municipal havia o prefeito Clóvis Cunha Vianna, o bispo Dom Olívio Aurélio Fazza, os delegados da Polícia Civil, Siqueira e Germano, dona Rosa Cirilo, e o trio Toninho, Chico e Alvir. Ademais, inseparáveis. Embora correspondesse para os jornais de fora, trabalhei com os três simultaneamente. A afinidade maior era com o Chico, amigo das letras e dos botecos.
Empreitadas
Chico de Alencar respondia pela sucursal do jornal o Estado do Paraná e, anos depois, transferiu-se para o Correio de Notícias. Foz do Iguaçu não saía dos noticiários em razão da Itaipu. O jornalista transitava com muita facilidade entre as autoridades, sobretudo na Binacional, atraindo os pesos pesados da política brasileira. Respeitado, Chico escrevia também para o Jornal da Tarde, emplacando várias manchetes de capa. Recentemente, iniciei uma pesquisa sobre o saudoso amigo e reconfirmei a sua impressionante dedicação pela cidade e atrativos. Em quase todas as matérias, fez questão de mencionar as Cataratas do Iguaçu e o Parque Nacional, até se fossem os assuntos distantes.

Eloquência
O Chico estava pela cidade desde meados dos anos 70, contratado para editar o “Mini Informativo”, um quinzenário dedicado ao Turismo. Aos poucos foi firmando a pena e, nas frequentes tormentas que envolviam Foz, tornou-se o escudo, inconteste defensor, o que lhe valeu décadas depois a honraria de “Cidadão Honorário”. Faleceu em maio de 2020 e, passados cinco anos, nada fizeram para lembrá-lo. Poderia ser um nome de rua, praça, edifício público, pelo tanto que fez. O tempo passa e graças a essa apatia, o Chico só não é esquecido pelos mais próximos, que aos poucos também se vão. Fiquei imensamente feliz em saber que um vereador pensa iniciar um movimento no Legislativo, corrigindo o lapso memorial e quase temporal.
Campana
Se perguntarem em Curitiba, qual foi o maior, mais brilhante e influente jornalista em todos os tempos no Paraná, certamente alguém dirá: Fábio Campana. Começamos por lembrar que nasceu em Foz do Iguaçu, filho de família pioneira, gente séria e que pontuou a história. Fábio mudou-se para a capital jovem, dentre outras tornou-se um grande escritor, romancista, poeta, preservador da história. Combativo, acabou preso político na ditadura e depois destacou-se como homem de comunicação em vários governos. Foi secretário em gestões diferentes na prefeitura e governo do Estado. Atuou nos principais jornais como O Estado do Paraná, Gazeta do Povo, Tribuna do Paraná e, comentando na rádio BandNews Curitiba.
Empreendedor das palavras
Com o emaranhado de ideias e textos correndo nas veias, Campana criou a “Travessa dos Editores”, uma casa literária de primeira grandeza, reconhecida nacionalmente, responsável por publicações como as revistas “ET Cetera” e “Ideias”. Atento, Fábio foi muito competente no ambiente eletrônico, com um blog de notícias que se tornou obrigatório aos que esperavam atualização política e cultural. Em 2014 foi condecorado pelo governo do Paraná com a Ordem Estadual do Pinheiro. Não superou a Covid-19, e foi-se, também no mês de maio, em 2021. Quase todos os seus livros estão em minha biblioteca; ontem mesmo passei os olhos em “O último dia de Cabeza de Vaca (2005)”. Fábio editou e reeditou os maiores autores brasileiros etambém os menores, como foi o casdo do meu livro “Gato Preto, Gato Branco”. Bate uma saudade imensa do amigo. O que mata um pouco essa saudade é descansar no banco de uma praça, andar por uma alameda ou olhar uma pkaca que seja, como o nome de alguém assim.

O que fazer?
A sociedade são pode simplesmente ser tão ingrata e esquecer pessoas como o Fábio, Chico, e tantos que contribuíram nos mais diversos setores. É importante preservar a memória de figuras que contribuíram significativamente para a história local. Feliz é a cidade que trabalha a preservação da memória coletiva porque é assim que conectamos o presente com o passado, criando identidade para os espaços urbanos que vai além de sua simples função geográfica.
Rogério Romano Bonato escreve regularmente para o Almanaque Futuro