Alexandre de Moraes: entre o herói constitucional e o vilão algorítmico
Na era da justiça em tempo real, o ministro se tornou protagonista absoluto — aclamado por uns, temido por outros. Mas afinal: Moraes extrapola ou apenas ocupa o vazio deixado pelos demais poderes?
Tornozeleira no Planalto
Se a imagem vale mais do que mil palavras, então a tornozeleira eletrônica que Jair Bolsonaro usou para desfilar no Congresso já disse tudo. Em gesto teatral, o ex-presidente ergueu a barra da calça e expôs o equipamento como se fosse condecoração de guerra. Chamou de “suprema humilhação”, negou tudo, fez beicinho diante dos fotógrafos e, para completar o drama, cancelou a coletiva de imprensa que ele mesmo havia marcado. A cereja no bolo bolsonarista foi a perícia da Polícia Federal que desdenhou o conteúdo de um misterioso pendrive achado num banheiro. Nada demais, segundo o laudo. Bolsonaro está livre da informação digital, mas não das digitais dos inquéritos.
O fator Moraes
Entre amigos e inimigos, Alexandre de Moraes é chamado de muitas coisas: linha-dura, justiceiro, provocador, guardião da democracia, inquisidor togado. A julgar pelos discursos inflamados da extrema-direita, ele já desbancou Lula como inimigo número um do bolsonarismo. Mas qual é, afinal, a do ministro? Seria pessoal? Seria institucional? O próprio Moraes diz que não há nada a esconder e que todas as medidas — inclusive as mais duras — são amparadas por investigações legais já em curso. Ainda assim, paira a dúvida: até onde vai a toga e onde começa o bastão de comando? O Brasil precisa de justiça — e também de equilíbrio. A retórica é forte, mas o momento pede mais razão do que revanche.
O homem do tempo
Alexandre de Moraes não é apenas um ministro do Supremo. Tornou-se o termômetro e o barômetro da democracia brasileira desde que caiu no olho do furacão das fake news e das milícias digitais. Nomeado por Michel Temer em 2017, passou a ser o relator dos inquéritos mais inflamáveis do país — um guarda-chuva judicial que abrange desde robôs de WhatsApp até as ruínas do 8 de janeiro. O cargo o colocou como protagonista e antagonista ao mesmo tempo. Herói para uns, algoz para outros, tornou-se a encarnação viva do artigo 5º versus o artigo 142 — dependendo de quem lê a Constituição com lupa ou com revólver.
Contra as urnas, os dados
Tudo começou com as urnas eletrônicas. A narrativa de vulnerabilidade foi desafiada por fatos, perícias e decisões colegiadas. Ainda assim, Moraes vestiu a capa de guardião e declarou guerra aos criadores de fake news e seus replicadores fanáticos. A eleição virou palco de verdades paralelas, onde a urna era menos atacada por hackers do que por narrativas. Em 2022, como presidente do TSE, Moraes tornou-se o antídoto de uma cruzada desinformativa. O problema é que, no Brasil polarizado, quem combate mentiras acaba sendo acusado de silenciar “liberdades”.
Supremo sob ataque
O inquérito das fake news nasceu com DNA polêmico: foi instaurado sem a participação do Ministério Público. Ainda assim, o plenário do STF o validou. Motivo? Defender a própria instituição contra agressões coordenadas. Isso deu margem para que outros inquéritos se conectassem a ele, todos sob a batuta de Moraes. Para críticos, concentrar tanto poder num único ministro fere o equilíbrio da balança constitucional. Para apoiadores, trata-se apenas de pragmatismo frente a ameaças reais. Há quem veja nisso o nascimento de um novo Leviatã togado. Outros, um bombeiro em meio ao incêndio democrático.
O preço da centralização
Juristas alertam: o Estado de Direito é filho da divisão de poderes, não de superministros. Moraes acumula relatorias, assina decisões monocráticas e assume o papel de comandante-em-chefe de um Judiciário em estado de alerta. Mas onde começa a eficácia e onde termina a arbitrariedade? Para o professor Pádua, da UFF, a legalidade tem limites, mesmo diante do caos. Já para Peluso, da UFMG, o novo regimento do STF — que submete medidas cautelares ao plenário — ajuda a conter excessos sem travar as investigações. O problema é que o brasileiro médio já nem sabe mais o que é excessivo.
Herói ou imperador?
Moraes enfrenta o dilema do poder: quanto mais se age, mais se arrisca. Sua decisão de afastar o governador Ibaneis Rocha, por exemplo, foi criticada por ter sido tomada sem pedido da PGR. Mas também foi vista como uma medida urgente, com respaldo da AGU e validação da maioria dos ministros. O fato é que Moraes age onde outros hesitam. O problema é que, quando um ministro vira protagonista absoluto, os freios e contrapesos podem parecer decorativos. Afinal, quem vigia o vigilante quando todos estão com medo do que acontece fora da Corte?
Prisão para todos?
Depois do 8 de janeiro, Moraes mandou prender em massa quem estava no QG do Exército — cerca de 1.400 pessoas. Para muitos, foi a única forma de evitar que os golpistas evaporassem. Para outros, foi uma ação desproporcional, que atropelou garantias processuais básicas. A Defensoria Pública denunciou flagrantes mal instruídos, ausência de documentos e prisões que não passaram pelo devido crivo legal. Ainda assim, o ministro converteu centenas de detenções em prisões preventivas. A pergunta que não cala: segurança jurídica pode ser temporariamente suspensa em nome da segurança institucional?
Whatsapp, lei e medo
Antes do 8 de janeiro, Moraes já havia mostrado os dentes (e as unhas). Em 2022, mandou bloquear contas e apreender bens de empresários bolsonaristas que cogitaram golpe em grupo de WhatsApp. A decisão, com efeito intimidador, foi criticada até por apoiadores do STF. Para o professor Mafei, da USP, houve exagero — mais teatralidade que urgência. Mesmo assim, o cenário político continha gasolina suficiente para justificar ações preventivas. Num país acostumado a impunidades, talvez a caneta de Moraes esteja apenas surpreendendo por cumprir o que outros sempre deixaram de fazer.
No fio da navalha
Moraes não age sozinho. Suas decisões têm sido majoritariamente referendadas pelo plenário do STF. O Congresso, por sua vez, não reagiu: nem CPI, nem impeachment. Ou seja, gostem ou não, há institucionalidade em curso. Ainda assim, Moraes vive sob a linha tênue entre justiça e justiçamento. É o enredo clássico do herói que arrisca virar vilão — ou do vilão que muitos aceitam como herói, porque o inimigo parece maior. A verdade é que não há saída fora da lei. E, por mais ácida que seja a crítica, o que importa é que o Brasil siga caminhando — ainda que a passos largos — pelas linhas do Estado de Direito.
A digital da polarização
O bolsonarismo aprendeu a dançar conforme o algoritmo. Transformou Moraes no “inimigo perfeito”, aquele que cala, prende, bloqueia, bane e, segundo suas versões, governa mais que o próprio presidente. As redes sociais regurgitam vídeos recortados, distorcidos e ataques sistemáticos. Mas a idolatria cega por um e o ódio incondicional ao outro apenas reforçam a polarização tóxica que devora o debate público. Nessa novela de vilões e heróis, faltam advogados do meio-termo — e sobram juízes de WhatsApp.
A frágil muralha das instituições
O Supremo Tribunal Federal virou linha de frente da estabilidade democrática — e isso diz mais sobre a falência do sistema político do que sobre o ativismo judicial. Quando o Executivo é contaminado por radicalismos e o Legislativo foge do embate, resta ao Judiciário arbitrar conflitos que não deveriam lhe caber. Moraes não invadiu o jogo. Foi empurrado para o centro do campo. Se isso é saudável, é outra discussão. Mas negar que há uma crise de representatividade fora da toga é fingir que o problema está apenas na ponta da caneta.
A estratégia do enfrentamento
Ao concentrar investigações e adotar decisões duras, Moraes tornou-se sinônimo de enfrentamento. Mas enfrentamento não é consenso. Quando se prende em massa, bloqueia redes, afasta autoridades ou impõe censuras pontuais, o risco de escorregar para o autoritarismo judicial está sempre ali — piscando no retrovisor da legalidade. A dúvida é: o STF criou um precedente necessário ou uma jurisprudência que pode ser usada, no futuro, contra qualquer um? Porque o problema dos precedentes não é quem os cria, mas quem os herda.
A liturgia do cargo
Críticos dizem que Alexandre de Moraes passou a legislar por meio de despachos. Já seus defensores o veem como o único a aplicar com firmeza o que muitos relativizaram. No meio dessa guerra de narrativas, perdeu-se algo essencial: a liturgia do cargo. Juízes não podem agir como promotores, nem como profetas do caos. Precisam ser freio, não motor. A democracia exige instituições previsíveis, não personagens inflamados. E, com todo respeito ao ministro, há momentos em que sua eloquência ultrapassa os autos.
O futuro sob medida cautelar
As decisões de Moraes impactam o presente — mas modelam o futuro. Daqui até 2026, as ações do ministro (e suas repercussões) definirão o tamanho do campo democrático disponível aos que querem disputar eleições. O uso ou abuso da lei agora poderá justificar reações extremadas adiante. A história já mostrou que golpes não se evitam apenas com rigidez, mas com legitimidade. E a legitimidade vem do respeito às regras — inclusive por parte de quem tem o dever de garanti-las.
Nem todo silêncio é omissão
É curioso como tantos que defenderam a atuação de Alexandre de Moraes se calam diante de seus excessos. E como tantos que hoje gritam por liberdade, ontem se calaram diante de ameaças autoritárias. O Brasil não precisa de mudos seletivos, nem de surdos convenientes. Precisa de coerência. O Supremo não pode ser atacado, mas também não pode se tornar um bunker acima da crítica. Defender a Constituição é tarefa nobre, mas perigosa quando se começa a dobrá-la para protegê-la.
Entre a lei e o abismo
O Brasil precisa respirar. Nem tudo é golpe, nem tudo é censura. Entre a omissão e o arbítrio, há um caminho chamado Estado de Direito. Ele é estreito, difícil, exige maturidade institucional e vigilância cívica. Alexandre de Moraes pode estar certo em muitos pontos — e equivocado em outros. Mas não cabe a ele salvar ou destruir a República. Cabe às instituições funcionarem como deveriam. No fim, o que importa mesmo é que o país continue caminhando sobre as linhas da Constituição — e nunca sobre a linha tênue entre a lei e o abismo.
Rogério Romano Bonato escreve regularmente para o Almanaque Futuro