A nova política de EaD ou a arte de enxugar gelo com panos quentes

por Gaudêncio Penaforte

O governo federal apresentou nesta segunda-feira, com tom de grande feito, a Nova Política de Educação a Distância (EaD). A julgar pelo entusiasmo das autoridades e pelas palavras do ministro da Educação, Camilo Santana, estaríamos diante de um divisor de águas na oferta de ensino superior remoto no país — mais qualificado, mais inclusivo, mais responsável. Nada mais ilusório. O Decreto nº 12.456, de 19 de maio de 2025, publicado hoje no Diário Oficial da União, faz pouco mais que administrar a precariedade instalada, estabelecendo restrições pontuais para agradar corporações bem organizadas, enquanto preserva, na essência, a lógica predatória da indústria de diplomas rápidos e baratos que se espalhou pelo país.

A proibição da modalidade EaD para cursos de Medicina, Direito, Odontologia, Enfermagem e Psicologia soa, à primeira vista, como avanço civilizatório. E, de fato, seria absurdo imaginar a formação de médicos ou psicólogos sem a vivência prática que a profissão exige. Mas a decisão não se sustenta do ponto de vista técnico quando o mesmo decreto permite, sem o menor constrangimento, a continuidade do EaD para cursos de Engenharia — área que, assim como as demais, envolve saber técnico complexo, laboratórios, estágios e consequências diretas na vida das pessoas. Qual a justificativa para essa incoerência?

A resposta está menos na pedagogia e mais na política. A OAB, há anos, lidera um lobby eficaz contra o EaD em Direito. Não por altruísmo ou preocupação acadêmica, mas porque protege sua reserva de mercado e controla o acesso à profissão via exame de ordem. As demais corporações de Saúde seguiram o mesmo caminho. As Engenharias, sem um exame nacional compulsório e desarticuladas politicamente, não conseguiram impor a mesma resistência. Resultado: o governo cede onde há pressão organizada e deixa a porteira aberta onde a pressão é difusa.

Convém esclarecer que somente um neoludita radical se oporia hoje ao uso intensivo das tecnologias da informação, comunicação e inteligência artificial em todos os níveis da educação, especialmente no ensino superior — e em qualquer área ou curso. A educação contemporânea, se quiser ser socialmente relevante e academicamente robusta, precisa formar aprendizes autônomos, críticos e competentes para operar e refletir sobre as novas tecnologias. Não se trata aqui de defender posições retrógradas ou nostálgicas em favor de modelos exclusivamente presenciais. O que se cobra, com urgência, é um freio na mercantilização indiscriminada de cursos de EaD de baixíssima qualidade, que transformaram o diploma universitário em mero produto de prateleira.

Para dimensionar o drama: quase 80% das matrículas nas instituições privadas de ensino superior estão hoje na modalidade a distância. Em boa parte delas, o padrão é desolador — cursos de baixíssima exigência, material didático genérico, infraestrutura precária e tutores mal remunerados, sem real vínculo pedagógico com os estudantes. É o modelo “low cost, high profit” que colonizou a educação superior brasileira, vendendo diplomas como se vende assinatura de streaming.

Ao argumentar que o curso de Direito, pela sua natureza teórica e textual, seria um dos mais aptos a ser ministrado a distância ou, no mínimo, de forma semipresencial, não se está aqui sugerindo que o Brasil precise de mais cursos na área. Bem ao contrário: há uma proliferação que beira a epidemia de cursos de Direito no país, muitos deles sem qualquer padrão mínimo de qualidade. O que o Brasil precisa, dramaticamente, é de uma expansão vigorosa de cursos e vagas em Medicina.

Hoje, estima-se que mais de 50 mil estudantes brasileiros estejam cursando Medicina no exterior, especialmente na Argentina, Bolívia e Paraguai. Em Ciudad del Este, por exemplo, há uma concentração surpreendente de 17 faculdades de Medicina, cuja principal clientela é de estudantes brasileiros, inclusive de EaD. Tecnologicamente avançadíssimas, essas instituições dispensam laboratórios físicos e utilizam monitores de computador como simuladores de procedimentos clínicos. Qualidade assegurada. Ironias à parte, enquanto isso, a corporação médica brasileira fecha fileiras contra a expansão de vagas e cursos no país, e entra governo, sai governo, não se consegue colocar o interesse público acima das pressões de mercado. Por isso, temos uma das medicinas privadas mais caras do mundo, com consulta de especialista custando mais de R$ 1.000,00 nos grandes centros urbanos.

O novo decreto, com sua retórica otimista e suas consultas públicas amplamente divulgadas, não altera esse cenário. Limita-se a estabelecer percentuais mínimos simbólicos de atividades presenciais — 20% nos cursos EaD puros — e a criar o semipresencial como solução intermediária. Exige avaliações presenciais, institui a figura do mediador pedagógico e obriga infraestrutura mínima nos polos. Avanços pontuais? Sem dúvida. Mas incapazes de romper com a lógica mercantil e de baixa qualidade que hoje predomina.

Camilo Santana afirmou que a EaD pode proporcionar uma experiência “tão rica quanto a dos demais cursos”. É frase de propaganda institucional, descolada da realidade de boa parte das ofertas atuais e útil, na prática, para legitimar a permanência do modelo predatório. A Educação a Distância, quando bem planejada e com padrões rigorosos de qualidade, é ferramenta legítima e estratégica num país desigual e continental. Mas o Brasil, há anos, optou pelo atalho — e o novo decreto não corrige essa rota.

Importa registrar, por fim, que a crise da Educação Superior brasileira vai muito além do avanço do EaD predatório e de baixo custo. Ela é resultado de um modelo de financiamento privatista, de políticas de expansão desordenadas e de um Estado hesitante em regular com firmeza um setor dominado por interesses comerciais. A resposta do governo, tímida e parcial, está longe de ser suficiente para reverter o curso dessa erosão silenciosa. Os resultados efetivos da proclamada Nova Política de EaD somente se tornarão conhecidos no próximo governo. Mas desde já a ambição dos gestores do MEC frustra as expectativas de quem esperava uma mudança real e não coméstica. Enxugar gelo com panos quentes tende a acelerar o derretimento que, no caso da educação superior, já se faz notar por toda parte.

Resta saber quem, no futuro, arcará com o custo social e econômico dessa tragédia nacional.

Gaudêncio Penaforte, sociólogo e analista político, especializado em temas de integração regional e políticas públicas. Escreve com exclusividade para o Almanaque Futuro.