A extraordinária vida de um homem comum

  • Por Paulino Motter –  

O guri magricelo e desengonçado da Linha Agulha, nos cafundós de Aratiba-RS, oitavo filho de uma família de doze – daí a derivação óbvia do seu nome, Otávio – teve que pelear para aprender o Português já adolescente, motivo de bullying na escola e nas aulas de catequese, num tempo em que este conceito sequer existia. Mas nunca abandonaria o sotaque do dialeto Trentino falado em casa, uma mistura de alemão com italiano, da região de Trentino Alto-Adige, norte da Itália, procedência da família Motter.

Como todo filho de agricultores familiares, Otávio conheceu a dura labuta do campo ainda menino, nas escarpas íngremes da área rural do município de Aratiba. Aos 25 anos, já casado, com um filho de pouco mais de um ano a tiracolo, a mulher, Maria Antonieta, grávida de seis meses, se juntaria à leva de gaúchos atraídos pela promessa da nova fronteira agrícola do Oeste Paranaense. Era o início da década de 1960.

Começou com quase nada, abrigado provisoriamente no paiol do seu cunhado, Arlindo Reichert. Seguia a trilha dos irmãos mais velhos, Honório, Joana e Fioravante. Mais tarde, também viria se juntar o caçula, Honorino. Para cada filho varão, o patriarca, João Motter, agrimensor prático, entregou a posse de uma colônia. Meu pai perdeu a primeira para um grileiro, muito atuante na região naquele período. Conseguiria outra colônia, com a qual lograria sustentar uma família de sete filhos.

Mas meu pai não teria perseverado sem o pulso firme de Maria Antonieta, com quem teve um casamento de mais de 62 anos. Não tomava nenhuma decisão sem consultá-la. Nem ousava contrariá-la. Formavam um casal à moda antiga, com um claro sentido de missão e indissociabilidade.

Com escolarização rudimentar e profundamente religioso, Otávio encontrou no padre italiano Luis Luise, vigário da recém-criada paróquia de Nossa Senhora da Consolata, mais do que um guia espiritual: durante as suas visitas regulares, lhe pedia conselhos sobre cultivos e cuidados com a lavoura. Seguia os seus ensinamentos agrícolas com a mesma fé com que abraçava os dogmas católicos.

E foi sob a liderança empreendedora deste destemido missionário que Otávio se tornaria um dos protagonistas da saga de criação de uma cooperativa agrícola, iniciativa pioneira na região naquela época. Conversador proverbial, permitiu que vários agricultores passassem à sua frente na hora de assinar a ata de fundação da Copacol. Acabou figurando apenas como 14º associado, algo do que sempre se orgulharia.

Nunca foi um homem ambicioso. Sabia bem dos seus próprios limites. Praticava intuitivamente um ascetismo de rigor monástico, aceitando a frugalidade e as privações da vida no campo com humildade e resignação. Sempre foi fiel ao ensinamento bíblico: “Com o suor do teu rosto comerás o teu pão, até que retornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó e ao pó retornarás” (Gênesis 3:19).

Meu pai viveu do trabalho e para o trabalho. Educou seus sete filhos no cabo da enxada. Teve a alegria de ver seis deles graduados, dos quais cinco obtiveram título de mestrado e três de doutorado. O caçula, físico e matemático formado pela Unicamp, se tornaria professor-pesquisador na prestigiada Universidade de Northwestern, em Illinois, nos Estados Unidos.

A cooperativa que ajudou a fundar foi fundamental para a sobrevivência dos pequenos agricultores, viabilizando a comercialização da produção em melhores condições. Ele viveu o suficiente para ver a sua obra consolidada. Juntamente com os demais associados-fundadores, em 2013 recebeu justa homenagem na comemoração dos 50º anos da Copacol.

No último dia 14 de outubro, foi novamente homenageado, “in memorian”, na celebração do 60º aniversário da cooperativo que ajudou a fundar. Maria Antonieta, acompanhada de três dos seus filhos, recebeu a homenagem.

Em 2010, levado pelos filhos, Otávio realizou o sonho de conhecer a terra natal dos seus antepassados, o povoado de Tenna, às margens do Lago Caldonazzo. Surpreendeu a todos ao se comunicar com fluência com os moradores locais no dialeto trentino. Foi uma catarse redescobrir as raízes. A viagem incluiu peregrinações religiosas a Roma, Assis e Fátima. A visita ao Vaticano teve como ponto alto assistir uma audiência pública do Papa Bento XVI.

Há momentos irrepetíveis. E lembranças. Muitas lembranças. Durante a estada em Assis, berço de São Francisco, meu pai teve uma verdadeira epifania. Estimulado por um bom vinho italiano, revelou uma faceta que desconhecíamos: a de Dom Juan de Aratiba. Rompeu um noivado quando começou a cortejar minha mãe. Para não deixar dúvidas sobre a sua decisão, botou fogo no vestido de casamento que havia comprado para a ex-noiva.

Foi uma noite memorável.

(…)

Vim de Madri, em julho de 2021, para visitar meu pai, em Curitiba. Não o via desde maio de 2019, quando a família de reuniu para celebrar 60 anos de casamento. Minha filha caçula, Helena, então com 9 anos, insistiu para que eu a trouxesse, argumentando que poderia ser a sua última oportunidade de ver o avô vivo, pressentimento que se confirmaria.

O encontrei ausente do corpo que ainda habitava, mas seus olhos azuis mantinham o mesmo brilho. Sem pretender fazer uma hagiografia, meu pai era a personificação da serenidade dos justos e sábios. Um homem que se preparou toda uma vida para um encontro que não tardaria.

A chama se apagaria em 12 de setembro daquele ano. Meu pai foi uma das centenas de milhares de vítimas anônimas do Covid. Mas o seu legado vive – do que dá testemunho a pujança da Copacol ao comemorar 60 anos da sua fundação.

Paulino Motter, 58, jornalista e servidor público federal

Grifo da Editoria: em sua modéstia e simplicidade, certamente uma herança familiar, o autor do texto acima, Paulino Motter abreviou sua biografia, a qual fazemos questão de mencionar, pois ela relata muito bem a sua história e também importâqncia; além de jornalista, formado pela UFPR (1988), é Mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB (1994) e Doutor em Educação pela Universidade de Wisconsin-Madison, EUA (2008). Desde 1996, é servidor federal, integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Atualmente, é chefe de Gabinete da Secretaria de Articulação Intersetorial e com os Sistemas de Ensino, do Ministério da Educação (Sase/MEC). Foi assistente do Diretor-Geral Brasileiro da Itaipu Binacional, Jorge Miguel Samek, de 2007 a 2015. Fez parte da Comissão de Implantação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e foi o seu primeiro Pro-Reitor de Planejamento. Presidiu a Comissão de Licitação e deu início à obra do campus Niemeyer, que se encontra paralisada desde 2014. 

A família em dois tempos; no início dos anos 80, e recentemente, em um de seus últimos encontros