A humanidade e os seus deslizes apocalípticos
Coluna de Rogério Romano Bonato
A biblioteca entre o ontem e o agora
Entre a antiga máquina de escrever e a tela de um computador moderno, há uma estante discreta. Não ostenta a vaidade dos volumes raros, mas abriga o essencial: o que me ensinou — ou me advertiu — sobre a condição humana. Está lá “Os Sete Pilares da Sabedoria”, do enigmático T.E. Lawrence, onde desertos e dilemas moldam heróis sem pátria. Em seguida, “O Homem Sem Qualidades”, de Robert Musil, cuja lucidez crítica rasga a superfície das ideologias. Khaled Hosseini com “O Caçador de Pipas”, me lembra que nenhuma guerra começa sem antes estilhaçar a infância de alguém. Thomas Mann, em “A Montanha Mágica”, eleva o espírito e denuncia a doença do tempo. Wedgwood, com “A Guerra dos Trinta Anos”, mostra como a fé pode ser incendiária. Sun Tzu, didático, revela em “A Arte da Guerra” que vencer é antes de tudo não guerrear. Tolstói, em “Guerra e Paz”, ilumina a tragédia de Napoleão e a grandeza das almas simples. Tucídides, o clássico, oferece em “A Guerra do Peloponeso” a anatomia fria da ambição. E Barbara Tuchman, com “A Marcha da Insensatez”, nos obriga a admitir: a estupidez no poder tem longa tradição.
O mestre do silêncio e da escuta
Mas entre tantos livros, autores e teorias, o que mais me ajudou a compreender o tecido invisível da paz foi um homem de carne, palavra e sabedoria silenciosa: Mohamad Ibrahim Barakat. Não ensina pela força dos argumentos, mas pela delicadeza das perguntas. Com ele aprendi que a paz não se lê — se constrói, no cotidiano, na escuta atenta, na dúvida corajosa, no exercício da humildade. Barakat vê a humanidade não como projeto acabado, mas como esforço inacabado de superação da selvageria que insiste em nos habitar. Conversar com ele é como traduzir Tucídides à luz de um cafezinho, ou rediscutir Tolstói numa esquina da cidade. Ele vê nos gestos — e não nas teorias — o início ou o fim de uma guerra. E afirma: o que começa como intolerância vira trincheira. O que falta em empatia, sobra em pólvora. Seo Barakat me fez entender que a verdadeira guerra, antes de tudo, começa quando a escuta morre.
A centelha que antecede a tempestade
A história registra que as grandes guerras mundiais não nasceram prontas: foram construídas por pequenas provocações, alinhamentos de poder, ressentimentos mal resolvidos e, sobretudo, omissões diplomáticas. O assassinato de Francisco Ferdinando, em 1914, ou a invasão da Polônia em 1939, não foram fatos isolados. Eram culminações. Hoje, as movimentações militares da Rússia e o recrudescimento de tensões no Oriente Médio evocam o mesmo padrão histórico: a escalada gradual que se torna irreversível.
Rússia, Ucrânia e o argumento étnico-territorial
A invasão russa da Ucrânia resgata uma velha lógica bélica: a da “proteção de povos irmãos”. Hitler a usou com os Sudetos; Putin a evoca com Donetsk e Luhansk. A diferença linguística entre ucranianos e russos não é justificativa para ocupação militar. A retórica da irmandade linguística mascara ambições geopolíticas, controle de rotas energéticas e projeção de poder. O precedente é perigoso. Porque normaliza o expansionismo sob o véu da identidade cultural.
O Oriente Médio em ponto de ebulição
O atual governo de Benjamin Netanyahu intensificou a instabilidade histórica entre Israel e Palestina. Sua política belicista alargou o conflito para o Líbano e para o Irã, elevando o risco de uma conflagração regional com repercussões globais. A ausência de mediação eficaz e o uso desproporcional da força têm custado a vida de civis. A paz, neste tabuleiro, parece cada vez mais distante e fragmentada.
O Mundo em chamas
Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, há hoje cerca de 120 conflitos armados ativos no mundo. Desse total, mais de 30% envolvem armamentos pesados em pelo menos 60 países reconhecidos pela ONU. O dado é alarmante e desmente a ideia de que vivemos em tempos de paz. Na realidade, estamos em guerra permanente, fragmentada, com múltiplos palcos e causas — da religião ao território, da economia à ideologia.
Conflitos não internacionais e guerras por procuração
O modelo tradicional de guerra — entre Estados soberanos — está cada vez mais rarefeito. No lugar dele, emergem guerras assimétricas, em que governos enfrentam milícias, facções, insurgências e grupos paramilitares. Muitas vezes, com financiamento ou apoio logístico de potências estrangeiras. Essas guerras por procuração espalham instabilidade, prolongam crises e tornam a paz um ideal inalcançável para milhões.
Brasil: estado de violência permanente
Embora o Brasil não esteja oficialmente em guerra, vive uma situação de violência armada crônica, que supera muitos países em conflito. Facções controlam territórios, há enclaves armados, altos índices de homicídio e uma falência institucional em certas áreas. A ausência de uma declaração formal de guerra não significa paz. Apenas revela a omissão do Estado em reconhecer e enfrentar a crise em seu verdadeiro nome.
A polarização como gatilho
Assim como nos anos 1930, a polarização ideológica volta a incendiar o cenário global. A disputa entre visões extremas, seja na esquerda identitária ou na direita autoritária, tende a fragilizar democracias e solapar consensos. A internet amplifica o ódio, encurta as pontes de diálogo e transforma cada crise em trincheira. Quando a razão é substituída pela narrativa e a verdade pela conveniência, a guerra se torna inevitável.
Lições mal aprendidas
Os erros que precederam as duas grandes guerras do século XX não desapareceram. Foram reciclados. O nacionalismo exacerbado, o desprezo pelas instituições multilaterais, a militarização da política e a manipulação da memória coletiva são sinais que se repetem. A diferença é que hoje, o arsenal é nuclear, as redes são globais, e a destruição pode ser instantânea. A humanidade ainda joga com fósforos perto de barris de pólvora.
A Globalização como arco de tensão
O mundo conectado pelas cadeias produtivas, pelo comércio e pela cultura também se tornou mais vulnerável a choques regionais. Uma guerra no Leste Europeu afeta o preço do trigo no Brasil. Um ataque em Gaza pode elevar o custo do petróleo global. A interdependência econômica não trouxe imunidade à guerra. Pelo contrário, ela a torna mais contagiosa e imprevisível.
O Tempo da Escolha
Estamos num ponto de inflexão histórica. Ou aprendemos a desarmar as palavras antes das armas, ou seremos empurrados novamente à barbárie. A diplomacia, os fóruns multilaterais, os acordos de paz e os mecanismos de mediação precisam ser resgatados com urgência e prioridade. O mundo não precisa de uma nova guerra para lembrar-se do valor da paz. Mas talvez a humanidade ainda não tenha compreendido que sua pior inimiga… é ela mesma. “A guerra nasce no coração dos homens. É lá que ela precisa ser vencida.” — UNESCO, Preâmbulo da Constituição.
Para quase encerrar
Peço desculpas aos leitores se amanhecia na segunda-feira esboçando pessimismo. Lamentavelmente é o que vejo nos telejornais e noticiários. Não se pode ser simplesmente otimista, com tantos pedregulhos espetando calcanhar. E com esse clima moldado na cabeça, saímos para aruá e nos deparamos com um bela paisagem do inverno se aproximando, crianças encapuzadas a caminho da creche, o sol tentando vazar a neblina; meu cachorro abana o rabo e diz: otário, vai, me faz logo um afago e vê se muda de opinião: o mundo pode ser bem melhor do que esse desastre que você imagina ao acordar. Ele tem razão. Humanos são instáveis, porque não pensam com a mesma simplicidade que eles.
Um novo mundo ainda é possível?
Peço licença ao leitor para concluir este texto não com uma advertência, mas com um suspiro — desses que nascem quando o pensamento encontra a ternura. É verdade que a segunda-feira começou carregada, como se o noticiário noturno tivesse contaminado o café da manhã. Os números da guerra, os mapas da destruição, os discursos endurecidos… Tudo parece colaborar para uma desesperança crônica, uma descrença irreversível. Mas eis que a vida — essa entidade rebelde — propõe outra narrativa: Saí para a rua ainda sob o peso das leituras e dos fatos. Mas bastou olhar o inverno chegando com mansidão, a névoa dissolvendo-se ao toque do sol tímido, crianças de gorro e mochila atravessando a calçada com a leveza que só os inocentes conhecem. Meu cachorro, fiel analista do cotidiano, abanou o rabo como quem dissesse: “Vai, humano… larga um pouco a angústia e me faz um carinho.” Fiz. E, ao fazer, compreendi. A paz pode parecer uma utopia distante nos gabinetes e nas trincheiras, mas ela existe — breve, concreta, cotidiana — no gesto simples, no encontro casual, na escuta sem julgamento. Talvez, entre a tragédia da história e a grandeza da esperança, resida a real condição humana: a de quem tropeça todos os dias, mas ainda assim levanta, e tenta de novo. A vida, apesar de tudo, ainda vale o esforço.
Rogério Romano Bonato escreve ocasionalmente ao Almanaque Futuro