A escola à la carte e a ilusão do arlequim dourado

Paulino Motter

Num país marcado por profundas desigualdades sociais e raciais como é caso do Brasil, o ambiente escolar deveria se afirmar como um espaço de encontro, diversidade e formação cidadã. Mas a realidade de instituições privadas de alta renda, sobretudo em Brasília, revela o contrário: um modelo educacional que se estrutura a partir de uma lógica de mercado, na qual o cliente — e não o estudante — ocupa o centro das decisões pedagógicas e institucionais. É o que se poderíamos chamar de “escola à la carte”.

Nesse formato, a educação deixa de ser um projeto coletivo de formação e passa a funcionar como um serviço personalizado, onde pais e responsáveis, majoritariamente das elites locais, moldam as regras, flexibilizam normas e se recusam a aceitar qualquer contratempo ou contrariedade. Reclamar faz parte do hábito e do ethos desse segmento, e a escola, ansiosa por manter o seu portfólio de clientes satisfeito, adapta-se.

Como bem observa o educador e filósofo Miguel Arroyo, “quando a escola se transforma num serviço e o aluno num cliente, rompe-se o pacto social que sustenta a educação como direito e bem público”. No caso das escolas privadas de elite de Brasília, a homogeneidade econômica, racial e cultural de seu corpo discente não é mero detalhe: é o sintoma de uma educação elitista que se torna avessa à diversidade e incapaz de preparar seus estudantes para o convívio democrático.

A ausência de pluralidade não é apenas uma falha moral, mas um erro pedagógico. Como defende o sociólogo francês François Dubet, “uma escola que não representa a diversidade social do mundo em que está inserida é uma escola que contribui para perpetuar as desigualdades”. Nessas instituições, a convivência com o diferente é substituída pela repetição de privilégios, hábitos e códigos sociais de uma mesma elite, criando bolhas cognitivas e afetivas.

Outro traço característico dessa escola à la carte é o acolhimento sistemático daquilo que poderíamos chamar de “síndrome do arlequim dourado” — a crença de que o (a) filho (a) está sempre certo, e qualquer problema de comportamento deve ser relativizado, acobertado ou abordado “privadamente” pela instituição. Regras de convivência tornam-se maleáveis, o calendário de avaliações pode ser ajustado conforme conveniência familiar, e punições disciplinares são evitadas para não ferir susceptibilidades.
Como alerta o pedagogo português António Nóvoa, “uma escola que cede a todos os caprichos e individualismos familiares perde sua função social e pedagógica de formar sujeitos autônomos e responsáveis”. Funciona bem como aparelho de reprodução das hierarquias sociais.

Vale lembrar que a tão propalada “educação customizada”, vendida como um diferencial por essas instituições, serve muito mais para atender aos desejos e caprichos dos pais do que para responder às necessidades reais de aprendizagem, proteção e formação dos estudantes. Enquanto o cardápio educacional é ajustado conforme os humores e idiossincrasias familiares, as direções de escolas deste segmento revelam uma inexplicável inapetência para enfrentar questões essenciais da convivência escolar contemporânea, como bullying, misoginia, racismo e — pasmem! — até episódios de apologia ao nazismo, que chegam a ser relativizados ou silenciados para evitar desconfortos e preservar a imagem institucional.

Não faltam exemplos recentes que ilustram esse padrão. Em uma das escolas confessionais de elite da capital, um porteiro vítima de ofensas racistas por parte de estudantes foi transferido de unidade e posteriormente demitido, após pressionado a assinar documento negando a discriminação sofrida. A orientadora que tentou intervir em defesa do funcionário e dos princípios éticos mínimos da instituição foi igualmente afastada. Casos assim, infelizmente, não são exceção, mas sintoma de um modelo que prefere proteger privilégios e preservar aparências a lidar com as urgências civilizatórias de seu tempo.

Esse modelo serve ainda a interesses que vão além da conveniência imediata. Ele é funcional para a reprodução de capital cultural — no sentido clássico atribuído por Pierre Bourdieu — e para a legitimação da ideologia da meritocracia, ambos fundamentais para a manutenção de uma sociedade estruturalmente desigual como a brasileira. Ao excluir a diversidade e homogeneizar o ambiente escolar, essas instituições reforçam o monopólio de certos códigos culturais, modos de linguagem, repertórios simbólicos e relações sociais, apresentando-os como universais e superiores. E, ao final, atribuem o sucesso educacional não às condições de partida e aos privilégios acumulados, mas a um suposto mérito individual.

Reclamar, nesse contexto, tornou-se ato quase protocolar. Nenhum cardápio é suficientemente sofisticado, nenhuma regra suficientemente flexível, nenhum professor suficientemente disponível. E, nessa lógica, a escola não forma cidadãos críticos, mas consumidores insaciáveis, convencidos de que seus êxitos são frutos de esforço próprio e não de um sistema planejado para lhes favorecer. “Nothing is good enough”, nestes ambientes escolares que promovem o bilinguismo como um grande diferencial, preparando os filhos de famílias privilegiadas para viagens anuais à Disney.

Esse modelo, embora restrito a extratos sociais muito específicos, é profundamente antagônico aos princípios democráticos basilares. Educação elitista é, por definição, uma educação antidemocrática, porque nega o direito ao encontro com a diferença, ao conflito produtivo de ideias e à construção coletiva de saberes e valores. Mais do que serviços customizados, escolas deveriam ser territórios de diversidade, tensionamento e formação ética.

O caso recente de racismo envolvendo um funcionário de uma dessas escolas confessionais de Brasília é, portanto, um retrato preocupante de como a lógica de mercado aplicada à educação privada, sem contrapesos éticos e sociais, fragiliza os próprios fundamentos da escola enquanto espaço republicano. É urgente resgatar o sentido público da educação, mesmo nas instituições privadas, reafirmando que formar para a democracia exige, antes de tudo, conviver com a pluralidade, proteger os vulneráveis e enfrentar, com firmeza, as intolerâncias que as elites preferem ignorar.

Retrato abstrato de homem pensativo

Paulino Motter , jornalista e servidor público federal, é mestre em Ciência Política pela UNB (1994) e doutor em Educação pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) (2008). Foi assistente da Diretoria-Geral Brasileira da Itaipu Binacional (2007-2015) e colaborou na implantação da UNILA (2010-2012).