Leis não deveriam calar o afeto
A proposta que ameaça o funcionamento das APAEs em Foz do Iguaçu desafia não apenas a legislação educacional, mas o próprio sentido de humanidade nas políticas públicas.
Por Rogério Bonato
Foz do Iguaçu vive dias de apreensão com a notícia de que as unidades da APAE podem ter suas atividades comprometidas por uma proposta em debate no Conselho Municipal de Educação. Só quem tem um filho, irmão ou parente atendido por essa instituição é capaz de compreender a dimensão dessa ameaça. É o tipo de risco que não deveria sequer ser cogitado numa sociedade que se pretende civilizada. A cidade está inquieta — e com razão.
Muitos que opinam nas redes sociais talvez nem saibam o que é, de fato, a APAE. A sigla significa Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, uma organização sem fins lucrativos que há décadas cumpre um papel que o Estado brasileiro, por omissão ou incapacidade, nunca conseguiu exercer plenamente: o de acolher, educar, tratar e incluir pessoas com deficiência intelectual ou múltipla. A APAE não é apenas uma escola, é um centro de humanidade — onde o conhecimento caminha lado a lado com o afeto.
A proposta em análise prevê que a educação especial seja oferecida exclusivamente na sala comum do ensino regular, excluindo a possibilidade de atendimento em instituições especializadas. Isso, na prática, desmonta o modelo de atenção que as APAEs representam. A Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação são claras ao dizer que o ensino deve ocorrer preferencialmente na sala comum — nunca de forma obrigatória. O advérbio “preferencialmente” é a ponte que separa a inclusão verdadeira da exclusão travestida de igualdade.
Em Foz, a APAE é referência incontestável. Seus corredores reúnem professores especialistas, pedagogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, médicos e assistentes sociais que constroem, dia após dia, as histórias de superação de centenas de famílias. A entidade fornece quatro refeições diárias, mantém oficinas de arte, música, dança e esportes. Seu impacto social é tão amplo que não cabe nas estatísticas — mede-se em dignidade, em sorrisos e em vidas transformadas.
Cumprir a lei é indispensável, mas adaptá-la à realidade é fundamental — e é justamente disso que se espera dos nossos legisladores e gestores. No campo das entidades sociais, as leis muitas vezes funcionam como uma bola de boliche: fazem barulho, rolam com força e, quando acertam um pino, provocam um strike; caem as práticas exitosas e os serviços que sustentam o tecido social. Um movimento impensado no Conselho de Educação de Foz pode abrir precedentes graves que atingem não só a APAE, mas também entidades coirmãs como a ACDD, o Nosso Canto, a APASFI e Escola Alternativa que atendem uma parcela importante da população.
Essas decisões afetam diretamente os atendidos, porque nenhuma planilha orçamentária ou argumento jurídico será capaz de traduzir o que se passa na cabeça de uma criança com deficiência diante da ruptura de seu ambiente terapêutico e educacional. As leis são necessárias — mas a sensibilidade é indispensável. As autoridades precisam se antecipar, arranjar soluções e lembrar que os repasses, os convênios e os subsídios são uma gota no oceano, se comparados aos prejuízos humanos e emocionais que podem causar.
Retirar o apoio técnico e financeiro dessas instituições é um erro ético, jurídico e civilizatório. As APAEs e coirmãs não concorrem com a escola pública: complementam-na. São extensões do dever do Estado e da solidariedade comunitária. Representam o que há de mais humano em uma sociedade — a capacidade de cuidar dos que mais precisam, sem pedir nada em troca.
É tempo de reconhecer que as APAEs e entidades coirmãs merecem não só recursos, mas proteção. Elas deveriam estar sob uma redoma de respeito e gratidão, não sob ameaça. Porque onde o Estado falha, a sociedade se organiza. E quando a sociedade se organiza em torno do amor, o mínimo que se espera do poder público é que não atrapalhe.
Rogério Bonato escreve com exclusividade para o Almanque Futuro.