Parque Nacional do Iguaçu: o alicerce histórico que sustenta a queda de braço entre Estado e governo federal.
Certamente Alberto Santos Dumont, a quem foi atribuída a “paternidade” do Parque Nacional do Iguaçu, jamais imaginou o furdunço que sua visita causaria um século depois.
E a culpa é dele mesmo. Voltando no tempo — rapidinho, mas com firmeza — para situar o que acontece hoje: Santos Dumont — que assinava “Santos-Dumont”, em homenagem à sua brasilidade e à França, que o acolhera — retornava de uma palestra em Santiago, Chile, quando seu navio aportou em Buenos Aires. Ao percorrer as ruas da capital portenha, deu de cara com um belo pôster das Cataratas do Iguaçu, numa casa “photografica”. Era obra em processo de daguerreotipia de Moisés Santiago Bertoni. O naturalista acompanhava a exposição de seu trabalho e, ao sair para a calçada, deparou-se com Santos Dumont admirando a vitrine.
Empatia entre gênios
Elfrida Engel Rios, testemunha ímpar e inconteste sobre a passagem de Dumont pela Região, relatou que o encontro de titãs foi “como amor à primeira vista”. Bertoni, ao descrever sua devoção pelas Cataratas e as belezas do “Iguazú”, acabou desviando a rota do inventor do avião. Quando o navio apitou com destino ao Rio de Janeiro, o ilustre passageiro já havia embarcado num pequeno vapor contra a correnteza do Rio Tigre rumo ao Norte da Argentina. Dona Elfrida, com cerca de 76 anos, me contou longamente sobre isso em 1981, em sua casa simpática, ao lado da Loja Jaci, na esquina entre as ruas Almirante Barroso e Edmundo de Barros. “Eu era uma menina moça, de uns 12 anos, e, junto com meu pai, acompanhei todos os passos de Santos Dumont em sua emocionante visita. O tempo foi passando e conversando com uns e outros, fui montando essa história, que muita gente ainda nem sabe”.
Verdades e mitos
A história tem sombras, porque faltam documentos completos — especialmente nas partes que envolvem deslocamentos e permissões. Mas Elfrida afirmou que Bertoni fazia viagens frequentes à Buenos Aires, se utilizando de vapores da Bacia do Prata, e naquela ocasião, teria acompanhado Dumont até Corrientes. O cientista desembarcou para um compromisso inadiável em Assunção, com o presidente Eduardo Schaerer. Até Puerto Aguirre, hoje Iguazú, Dumont fez amizades e ganhou hospitalidade no lado argentino. Sabendo disso, brasileiros — conduziram Frederico Engel — partiram em sua busca.
Empreitada
O desejo de Dumont era comprovar se as Cataratas eram tão magníficas como descrevia Bertoni — ou se estavam à altura de seu daguerreótipo. Organizou-se então uma expedição: era necessário deslocar-se pela mata, remover troncos, prever batedores para eventuais onças e outros perigos. Uma jornada de um dia ou mais para chegar às quedas, no estilo de “pique-nique”. Para isso, foi exigida autorização do “dono do terreno” — um espanhol naturalizado uruguaio, conhecido como rigoroso na exploração e obragem da erva-mate.
Nariz torcido
Dumont aceitou a formalidade de pedir permissão, mas isso serviu para atiçar sua revolta. Embrenhou-se pelas trilhas com as crianças — entre elas Elfrida — saltando troncos, escalando pedras, equilibrando-se em galhos sobre o Salto Floriano. “As alturas não me intimidam”, teria dito, de braços abertos, diante dos gritos de pavor dos acompanhantes.
A revolta
Dumont permaneceu vários dias entre Foz e Iguazú, mas depois de ver as Cataratas declarou “perder o sono” e partiu para Curitiba — parte do trajeto em lombo de burro — para persuadir o presidente do Estado do Paraná, Affonso Camargo, a emancipar a área. Esse relato me veio do saudoso Affonso Camargo Neto, ex-deputado federal, ministro da República, que confirmou inclusive os relatos de Elfrida Engel e além do mais, como foi a hospedagem de Dumont no Palácio do Governo, os passos da aventura, o encontro com Bertoni, tudo o mais que fora antes narrado. Como resultado, o Estado adquiriu por indenização as terras do posseiro uruguaio Jesus do Val. Ele lutou anos contra a desapropriação. A federalização da área, porém, só ocorreria no final dos anos 30, por decreto de Getúlio Vargas.

O título do Paraná
Mais de um século após Santos Dumont acender a centelha pela preservação das Cataratas, o Estado do Paraná mantém em cartório a matrícula da área onde estão localizadas as quedas. Em fevereiro deste ano, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) reconheceu a propriedade estadual sobre aproximadamente 1.085 hectares — equivalente a 1.520 campos de futebol — que incluem o trecho brasileiro das Cataratas e o Hotel que lá está encravado. A decisão reforçou um capítulo histórico e agora, o Estado reivindica que a titularidade reconhecida pela Justiça seja respeitada, mantendo o direito de conduzir parte essencial do patrimônio natural mais visitado do Brasil.
Diálogo frustrado
De lá para cá, tentativas de conciliação foram conduzidas no Setor de Conciliações do TRF-4, a pedido da Procuradoria-Geral do Estado (PGE-PR). A proposta era clara: estabelecer, junto à União, uma divisão de responsabilidades sobre fiscalização e monitoramento da área. O governo federal, representado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), recusou-se a validar qualquer acordo, sustentando que eventuais ajustes devem ser tratados apenas em fase de cumprimento da decisão nos tribunais superiores. O impasse não é mero detalhe burocrático: interfere diretamente na gestão turística e ambiental das Cataratas, que em agosto bateram recorde histórico de visitação com 156 mil turistas de 115 nacionalidades. Uma queda de braço contemporânea, em que passado e presente se entrelaçam na mesma disputa.
Enquanto isso…
Foz do Iguaçu não pode ser tratada como mero ringue entre Estado e União. A cada embate judicial, a cidade aparece no noticiário como pano de fundo do duelo, mas seus moradores ficam de fora dos dividendos reais. Restam os postos de trabalho e a menção geográfica, como se isso bastasse para compensar o peso de abrigar uma das maiores maravilhas naturais do planeta. No sentido prático, o que é revertido em favor da população? Quase nada.
A fatia sem a cereja
No esplêndido confeite da arrecadação, a fatia maior cabe naturalmente ao governo federal, que utiliza as receitas para sustentar parques sem visitação em todo o Brasil. O Estado do Paraná, por sua vez, mira a parte que poderá caber-lhe caso a disputa avance na Justiça. E Foz? Fica, como sempre, sem a cereja. Francamente, ela é o Hotel das Cataratas — patrimônio erguido por pioneiros e sustentado por gerações de trabalhadores locais, mas entregue em concessão a grupos estrangeiros de nomes pomposos.
Grande negócio… dos outros
O Hotel, alojado no coração do PNI, é a hospedagem mais cara do destino e concorre, de forma desigual, com a rede hoteleira instalada fora dos limites do parque. Lucros vultosos que evaporam para além das fronteiras, deixando aqui apenas a lembrança dos que trabalharam na manutenção, na cozinha, nos serviços gerais ou na gerência. Negócio redondo, mas para os outros.

E o que fazer?
O momento exige coragem e organização. É hora de Foz brigar pela sua cereja. O Hotel das Cataratas poderia abrigar uma Escola Internacional de Hotelaria, formando profissionais brasileiros e estrangeiros, hospedando estudantes, professores e também visitantes, revertendo renda em qualificação e oportunidades. Seria uma bandeira de futuro muito mais altiva do que entregar glamour em bandeja de prata a grupos que já colecionam resorts mundo afora. Será preciso ressuscitar Santos Dumont para nos lembrar de lutar outra vez? Ou bastaria erguer os olhos para sua estátua em bronze, fruto do sacrifício de dona Elfrida, e recordar o legado que ele deixou? O tempo é agora: Foz do Iguaçu precisa reivindicar o que lhe pertence por justiça e por direito.
Rogério Bonato escreve para o Almanaque Futuro