Quando o perdão perde a razão
Entre metáforas de cobras, caroços de pequi e mesas carcomidas, a PEC da Anistia se reinventa a cada instante e mostra como a autoproteção política corrói a democracia. Leia a coluna de Rogério Bonato
Não deu lá muito certo
Anistia, na raiz grega, é esquecimento. No Brasil, virou sinônimo de “amnésia seletiva”. O que nasceu como ferramenta de reconciliação nacional, transformou-se em senha para autoproteção de políticos. Agora, as chamadas PEC da Blindagem e PL da Anistia, votadas em turnos relâmpagos e a portas semicerradas, reacendem a velha lamparina amarela na cabeça da população: tudo o que favorece os parlamentares costuma ter o efeito contrário para os cidadãos comuns.
Blindagem inédita
A Câmara aprovou a instalação dos pacotes bem enjambrados que concedem ao Congresso a prerrogativa de barrar processos contra parlamentares e dificultar prisões decretadas pelo Supremo. Foi uma costura pelo centrão com apoio maciço do PL e até de dissidentes do PT. Os dispositivos devem ir além da Constituição de 1988, estabelecendo votação secreta para processar deputados e senadores. Essa fórmula soa como um remédio milagroso, mas esconde a bula: mais blindagem do que transparência, mais conveniência do que justiça. Retocando a maquiagem, o que seria um projeto de anistia passou a ter como foco a dosimetria das penas. O impasse continua: um lado quer redução, com forte oposição da esquerda, enquanto a direita só fala em anistiar amplamente os condenados e quem mais estiver em vias de condenação.
Mercados persas
A promessa inicial era, sim, resgatar e fortalecer o espírito da Carta de 88. O resultado, no entanto, foi a criação de um oásis para autoproteção. Sob ameaça do centrão, parte da bancada governista cedeu. A pressa do rito e a ausência de clareza apenas reforçam a percepção de que o Congresso se converte em bazar de privilégios, onde moedas de troca são a impunidade e a desconfiança popular.
72 horas de negociações
Em apenas três dias, a PEC e PL das chamadas “blindagem e anistia” avançaram com efeitos inusitados, embalados no que seria a reconciliação nacional. Para muitos, ainda há cheiro de inconstitucionalidade — mas esse é apenas um lado da moeda. O Centrão teria fechado acordos sigilosos com uma ala do STF, costurando prisão domiciliar para Bolsonaro, a redução de penas e a rejeição da anistia ampla. O movimento dependeria, em tese, de recuo do PL, o que é difícil. O presidente da Câmara, Hugo Motta, fala em pacificação; já Paulinho da Força, aliado de Alexandre de Moraes, escalado como relator, esboça um texto de “meio termo”. A missão é negociar com Supremo e Planalto: perdão, dificilmente; redução de penas, talvez. E Lula deixou o recado: se o Congresso aprovar anistia a Bolsonaro, vetará.
Caroço de pequi
O termo “anistia” soa suave, mas guarda espinhos e amargores. É como lidar com uma cobra-coral: não se deve ignorar, tampouco agir de forma impensada. O correto é chamar quem entende do risco e pode tomar a decisão certa. A anistia política carrega essa ambiguidade — pode nascer como necessidade, mas, na prática, gerar efeitos perversos. No campo simbólico, trata-se de um gesto que deveria pacificar, no entanto, no andar da carruagem, abre espaço para novas mordidas no tecido da democracia. Agora, se uma cobra-coral estivesse embaixo do seu sofá, leitor, o que você faria? Mataria o bicho, chamaria a zoonose ou simplesmente o soltaria no jardim? Eis que, comparado às demandas do Congresso, o animal peçonhento quase sempre acaba largado no quintal.
Anistia, indultos e outros
Não se trata de comparar políticos a cobras venenosas, mas de mostrar como processos distintos podem se confundir. Uma comparação: a anistia é mais ampla que o indulto, que tem caráter individual. E os dados do CNJ revelam: no Brasil, 70% dos que saem do sistema prisional voltam a reincidir, mesmo após cumprirem penas. A reincidência expõe a fragilidade do controle social. Se isso já ocorre no crime comum, o que esperar quando a própria política tenta se blindar da Justiça? A reincidência institucionalizada é o verdadeiro veneno.
Quem merece e quem não
Esse dilema acompanha a história. A anistia sempre foi cabelo em ovo, dependendo do regime e das circunstâncias. Nelson Mandela, por exemplo, enfrentou inúmeros processos de anistia na África do Sul, mas seu nome jamais foi incluído nas listas, por temor de que a medida fragilizasse o combate ao apartheid. Resultado: cumpriu 27 anos de prisão. No Brasil, após os episódios de janeiro, muitas pessoas sequer estavam nos atos em Brasília, mas foram presas no acampamento diante do QG do Exército. Houve quem “entrasse de gaiato no navio” em situações diversas. A essas, sustentam juristas, caberia de fato a anistia.
A anistia e suas contradições
Mas a anistia também tem seu lado sombrio. A história mostra que nem sempre perdoar é corrigir — muitas vezes é perpetuar vícios. Foi assim em tantos episódios de corrupção que exigiram operações como a Lava Jato. Agora, com a chamada PEC da Blindagem e o PL da Anistia, a lógica se repete: vende-se a ideia de reconciliação, mas o que está em jogo é a redoma contra fiscalização e punição. A população, ao perceber o truque, reage com desconfiança. No fim, o caroço de pequi se impõe: em vez do sabor prometido, sobram os espinhos que ferem a confiança democrática.
A população pensa rápido
Os políticos subestimam a inteligência coletiva, mas o cidadão percebe mais do que aparenta. Pode não dominar os meandros jurídicos, mas a intuição fala alto diante de uma classe já marcada pela rejeição. O julgamento de Jair Bolsonaro e de outros pelo 8 de janeiro serviu de cortina de fumaça, como se fosse mera resposta ao STF. Para muitos, porém, o ex-presidente não passa de um fantoche numa engrenagem maior, onde a verdadeira moeda de troca é a aprovação da PEC da Blindagem. Nesse jogo, até a prisão após a condenação pode soar como peça de barganha. Barbaridade!
Quando a mesa perde um pé
A democracia é como uma mesa sólida: sustenta-se em quatro apoios fundamentais — a população, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Enquanto esses pés permanecem íntegros, o conjunto resiste às pressões. Mas basta que um deles seja corroído por cupins — pela corrupção, pelo abuso ou pela manipulação — para que toda a estrutura desabe. O risco desses processos de blindagem e anistia é enfraquecer o poder que fiscaliza, minando o equilíbrio entre os demais. Se a mesa cai, não cai sozinha; despenca com ela tudo o que sustenta, inclusive os direitos do cidadão. E para reforçar a imagem, pensemos também na cama: espaço de descanso e sonho. Se um pé se rompe, o repouso vira sobressalto e o sono se transforma em pesadelo. Assim se sente o brasileiro comum — trabalhador, cumpridor de deveres — que espera dos políticos não artimanhas, mas a garantia de seus direitos.
Contágio
Francamente, há outra questão: a política brasileira se espalha mais rápido que catapora. Qualquer artifício inventado em Brasília logo vira moda nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras Municipais e, com alguma criatividade, até nas reuniões de condomínio. A blindagem criada para poucos acaba servindo de precedente para muitos. No fim, a redoma não é apenas um abrigo para os políticos, mas um vírus de conveniência que ameaça contaminar toda a vida pública.
