O “conflito tarifário” começa a roubar o sono de muita gente

Em sua coluna, Rogério Bonato analisa o desacordo entre Donald Trump e o resto do mundo

“Comércio em estado de guerra”

Nos últimos dias, os leitores desta coluna têm enviado perguntas recorrentes: “Como vai acabar essa encrenca entre Trump e o mundo?”, “O Brasil vai retaliar?”, “Estamos em guerra comercial?”. Este colunista responde com a honestidade que o momento exige: ninguém sabe como isso termina. Mas é possível analisar o que está em jogo, com base nos fatos, no contexto histórico e na lógica geopolítica que rege os interesses das grandes potências. Para isso, deixemos de lado — ao menos por hoje — a duplicação da BR-469, as obras da Perimetral e até os preços na feirinha da JK. O que está em curso no tabuleiro internacional é uma reconfiguração brutal das relações comerciais, liderada por um personagem imprevisível: Donald Trump. Ele não quer apenas proteger a economia americana — quer reescrever as regras do jogo. O tarifaço anunciado por Trump não é uma medida isolada, mas parte de uma estratégia maior, cujo impacto pode ser comparado ao de um terremoto nas economias frágeis. O Brasil foi atingido. O mundo todo está sentindo. E o que era uma disputa entre superpotências virou uma crise com múltiplos epicentros. Nesta edição, seguimos o pedido dos leitores: tentamos explicar, sem ilusões, para onde tudo isso pode nos levar.

 

Trump lança o dado — e o mundo segura o tabuleiro

A crise comercial global, deflagrada pelos tarifaços de Donald Trump, marca uma guinada radical no modelo de trocas multilaterais construído nas últimas décadas. O presidente americano partiu para a ofensiva com alíquotas de até 50% sobre produtos importados de dezenas de países, inclusive o Brasil. Em nome do “emprego americano”, Trump reativa o protecionismo do século passado, mas em um mundo muito mais interdependente. Ao fazer isso, chacoalha não apenas as relações comerciais, mas as bases políticas da diplomacia internacional. O comércio virou campo de batalha.

 

Sem aviso prévio e sem pedir licença

O tarifaço americano, sancionado em abril, foi uma medida unilateral, sem consulta prévia à Organização Mundial do Comércio. Trump decidiu, assinou e anunciou. A justificativa oficial é simples: reduzir o déficit comercial dos EUA, estimulando a indústria interna e combatendo a dependência externa. Na prática, a decisão mexe com cadeias globais inteiras. Empresas, governos e mercados foram pegos de surpresa. Não houve fase de transição. Como num jogo de pôquer, Trump jogou suas fichas na mesa — e mandou embaralhar de novo, sem combinar as regras com ninguém.

 

A China não engole fácil

A maior vítima — e também maior rival — dos EUA nessa disputa é a China. Trump impôs 125% de tarifa sobre uma extensa lista de produtos chineses. Pequim devolveu na mesma moeda: 84% sobre os americanos. O resultado é uma guerra comercial em estágio avançado, que afeta sobretudo setores estratégicos como o agroindustrial, aço e alumínio. Ambos os países sofrerão perdas bilionárias. Mas quem mais sente são os exportadores menores, que dependem desses gigantes como intermediários. E o consumidor global? Esse, claro, vai pagar a conta em dobro: preços mais altos, inflação e incerteza.

 

Japão, Coreia e o surgimento de uma aliança improvável

O Japão foi duramente atingido: tarifas americanas de 24% sobre seus produtos, com impacto direto na indústria automobilística — pilar da economia japonesa. A resposta foi rápida: Japão, China e Coreia do Sul articulam um pacto comercial trilateral para reduzir a dependência dos EUA. O objetivo é claro: resistir à fragmentação da economia global. O resultado disso? Uma Ásia mais unida, mais estratégica, e possivelmente mais agressiva na proteção dos seus interesses. Trump, sem querer, está construindo o bloco rival que tentou evitar.

 

Europa não engoliu seco — revidou

A União Europeia também entrou no ringue. Com tarifas de 20% sobre produtos exportados ao mercado americano — incluindo aço, alumínio e automóveis —, o bloco revidou com a mesma moeda: até 25% sobre importações dos EUA. Mais que isso: a UE assinou acordos com o México e negocia com os Emirados Árabes. O recado europeu é claro: se os EUA fecham portas, o Velho Continente abre novas rotas. A disputa deixou de ser tarifária — virou política. E talvez, como em outros períodos da história, também cultural.

 

O Brasil leva o tapa e agradece?

No início do tiroteio, o Brasil teve uma tarifa inicial de 10%. A justificativa foi a “reciprocidade”, pois o país aplico o mesmo percentual a produtos americanos. Mas nem por isso escapou da crise. O petardo agora é de 50% e o impacto será sentido nos custos de exportação, no agronegócio e nos índices de inflação. Lula tenta responder com diplomacia, mas enfrenta críticas internas. Já o bolsonarismo comemorou como se fosse vitória. Eduardo Bolsonaro, apontado como articulador da medida, virou herói. Mas a conta política pode chegar — e não será barata. O primeiro boleto: Lula volta ao protagonismo.

 

A direita perdeu o norte magnético

O tarifaço embaralhou o discurso da direita brasileira. Enquanto bolsonaristas festejam a medida, o agronegócio, base conservadora, sente o golpe no bolso. Exportadores protestam. Empresários se retraem. Tarcísio de Freitas silencia, desconfortável entre fidelidade ideológica e realidade econômica. E Lula, num passe político inesperado, volta a ter palco internacional. A direita se vê, pela primeira vez em anos, dividida e sem rumo comum.

 

A retórica da soberania

Trump defende que está protegendo empregos americanos. Mas ao elevar custos, fragiliza setores da própria economia. As empresas reclamam. Os sindicatos hesitam. E o consumidor, como sempre, será o sacrificado. Em nome de uma suposta “soberania econômica”, o presidente americano jogou o planeta em uma corrida por novos acordos, rotas e alianças. O discurso é forte, mas o efeito colateral pode ser devastador — inclusive nos próprios Estados Unidos. O país arrisca perder o papel de árbitro do comércio global.

 

E o Brasil: reação ou resignação?

O governo brasileiro estuda caminhos. Retaliar? Difícil. O mercado americano é essencial: representa 16% das importações do Brasil. Romper é insustentável. Mas calar-se demais, soa covardia. Lula aposta na via diplomática, enquanto articula novos mercados. A China acena com interesse. A União Europeia vê oportunidade no impasse. Mas esses processos são lentos. E o brasileiro médio, que paga os preços nas gôndolas do mercado, não pode esperar tratados comerciais amadurecerem.

 

Brics, dólar e o estopim da discórdia

A reunião do BRICS no Rio — com discursos sobre multilateralismo e uma possível moeda alternativa ao dólar — foi o estopim perfeito para as ações de Trump. Para ele, qualquer ameaça à supremacia do dólar é sabotagem. Mas a criação de uma nova moeda global é mais reação do que conspiração. O Sul Global se une por necessidade. O problema é que, em resposta, o governo dos EUA deixou o diálogo de lado e partiu para o ataque tarifário. No fim, quem discute uma nova ordem monetária não são apenas inimigos de Washington, mas ex-aliados cansados de ajoelhar.

 

Um tiro no próprio pé

As tarifas também afetam as importações americanas de alimentos, insumos agrícolas e componentes industriais. O custo interno nos EUA vai subir. Trump vendeu a ideia de proteger empregos, mas pode gerar demissões se os empresários perderem margem e competitividade. Quem produz depende de insumo. Quem consome, de preços baixos. O protecionismo em excesso, como já vimos na história, gera inflação, trava crescimento e vira peso morto na balança. É como calçar botas de concreto para correr uma maratona.

 

Novos mercados, velhos desafios

Para o Brasil, a crise traz risco e oportunidade. A China voltou a comprar sorgo e pode ampliar a aquisição de soja. A Europa reabriu conversas sobre o acordo Mercosul-UE. Isso soa promissor, mas exige diplomacia, estrutura, certificações, adaptações logísticas e ajustes cambiais. Não se abrem mercados da noite para o dia. E nesse tempo de transição, o país pode sangrar. Ainda assim, pode emergir mais forte, se houver planejamento — coisa rara na história da política comercial brasileira.

 

Agro em estado de alerta

O agronegócio, que por anos sustentou o discurso de liberdade econômica, começa a entender o custo de um “amigo” que joga para a própria torcida. A taxação americana encarece exportações, cria insegurança cambial e pode reduzir margens num setor já pressionado por clima, logística e burocracia. A base rural, até então fiel ao bolsonarismo, pode não perdoar o erro estratégico de Eduardo Bolsonaro. No campo, não há espaço para patriotada ideológica — só para contratos, faturamento e produtividade.

 

O Brasil sem bússola externa

Historicamente, o Brasil oscilou entre o alinhamento automático com os EUA e o isolacionismo tropical. Agora, precisa achar um rumo independente e realista. Ficar do lado dos americanos enquanto eles nos taxam parece masoquismo. Alinhar-se ao BRICS sem prudência pode desagradar os parceiros ocidentais. O desafio é negociar com todos, sem ajoelhar a nenhum. Um exercício raro na política externa nacional, que exige diplomatas mais técnicos do que ideológicos — e presidentes mais pragmáticos que passionais.

 

A nova ordem global se impõe

Trump está forçando o mundo a se reorganizar. Velhos blocos se rearticulam. A Ásia acelera sua integração. A Europa se aproxima do Sul Global. A América Latina volta a discutir independência comercial. Tudo isso porque o maior mercado do planeta decidiu apertar o cerco e cobrar o preço da liderança. Mas liderança não se impõe — se conquista. E, neste momento, o mundo não está disposto a obedecer sem questionar. Essa crise pode acelerar a transição para um sistema multipolar. O império comercial americano está sendo desafiado como nunca antes.

 

E no fim, a conta é global

O tarifaço não é apenas um conflito entre líderes: é uma bomba-relógio no coração da economia mundial. Todos perdem algo: acesso, previsibilidade, consumo. Para países como o Brasil, o risco é duplo — dependência de mercados voláteis e ausência de estratégias de longo prazo. O governo precisa correr, a diplomacia precisa funcionar, e a sociedade precisa entender que o mundo mudou. Não há mais espaço para inocência ou alinhamentos cegos. O comércio global entrou em estado de guerra. E quem não souber negociar, será apenas mais uma estatística. É isso que penso meus caros leitores, com isenção e o pouco que vivenciei nessa minha intrépida vida de jornalista. Uma boa terça-feira a todos!