Meu bolo favorito: manifesto contra a repressão dos sentidos

By Pedro Santafé

Fui atraído a Meu Bolo Favorito pela recomendação que vi nos stories de uma amiga — mulher independente, bem-sucedida, encantadora, auto-confiante e com poder de escolha —, mas para quem o amor insiste em permanecer elusivo e inconstante.
Esse paradoxo pessoal ecoa a pulsão do filme: a ânsia de amar sob um regime que tudo controla.

Nesta obra de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha, a teocracia iraniana não se faz apenas presente nos véus cerceados ou nos panos de fundo pintados de provérbios sagrados — ela sussurra em cada corredor, vigia cada suspiro. “As paredes têm ouvidos”, avisam as primeiras cenas, onde o riso contido vira um refrão de rebeldia doméstica. A escola de cinema iraniana — do silêncio cortante de Kiarostami ao olhar resistente de Panahi — ganha aqui um novo capítulo, em que o privado é político e o íntimo, um ato de insurgência.

O “jardim das delícias” se arma para um jantar a dois: velas trêmulas, taças entrelaçadas, promessas no aroma das pétalas. Mas a música que convoca à dança é também um alarme; logo a mesa se curva, as flores murcham, e a vizinha bisbilhoteira — fiscal do pudor — irrompe, lembrando que cada escolha amorosa é um gesto de coragem.

No epicentro desse manifesto de liberdade, explode a célebre cena do banheiro: ambos vestidos, caricatos anti-heróis de uma farsa brilhante. Ele, encharcado e desajeitado, evoca um Chaplin exilado em Teerã — o riso se confunde com a melancolia. Ela, com olhos sem glamour de musa, sustenta o instante com a força de quem suportou longevidades de silêncio interno. A água que escorre de seus corpos dilui qualquer artifício e revela o humor trágico que nasce do absurdo de amar sob cerco.

O mais dilacerante, porém, é a metáfora que dá título ao filme: o “bolo favorito” — aquele preparado por Mahin, a protagonista vivida por Maryam Moghadam, com o mesmo esmero e perfeição com que são feitas as geleias artesanais Santafé, para ser degustado e saboreado a dois, no tempo certo, no instante em que o desejo pede, e não quando o mundo consente. A suprema ironia é passar uma vida privando-se desse prazer por inibição ou repressão aos sentidos. Cada fatia roubada torna-se promessa e renúncia, doce e amarga ao mesmo tempo, lembrando que o prazer, afinal, é revolucionário.

Quando, então, a dama da morte — metáfora viva do poder absoluto — irrompe para ceifar o sopro final antes da consumação, compreendemos: Meu Bolo Favorito não se limita a um romance; é um grito. Amar, aqui, é auto-imolação, entrega absoluta que arde tão feroz quanto o medo que a cerca.

Vale a pena se entregar a um amor insurgente, mesmo sob o risco de colocar tudo a perder. Amar é o grito mais potente de liberdade, mesmo sob as condições mais adversas e nas circunstâncias mais improváveis.

O analista polpitico Pedro Santafé escreve com exclusividade para o Almanaque Futuro.