A formação da identidade social iguaçuense: do encontro de etnias à integração

Como será a identidade social das novas gerações, moldada pelo encontro de povos e quase uma centena de nacionalidades, ao lado de grandes obras humanas e heranças naturais, superando ciclos de devastação e trilhando o caminho da recomposição?

A definição étnica, a caracterização e identificação de uma sociedade, com base em atributos comuns, a cultura, o idioma, religiões, tradições, a geografia, bem como a ancestralidade, é uma tarefa científica e que requer aprofundado estudo, pesquisa e possivelmente décadas de convívio laboratorial.

Embora etnias compartilhadas contribuam para a formação de uma identidade coletiva, é necessário também apurar o senso de pertencimento e entender como ele se distingue em relação a outros grupos sociais.

Quais os valores e a percepção de identidade dos indivíduos que formam a sociedade iguaçuense? Há uma etnicidade construída? É possível descrever esta caracterização? Não trataremos aqui de raça, aspectos físicos ou biológicos, mas de uma população que conviveu com grandes transformações.

Boa parte da população hoje abordada como “trinacional”, ou os habitantes das cidades que compõem a Tríplice Fronteira, não eram nascidos nos anos 1960 e 1970, a população, segundo um artigo do professor, doutor em História da UNILA Micael Alvino da Silva, representava apenas 7% do número de habitantes contados nos anos 2010, quando Foz do Iguaçu chegou ao seu centenário. Segundo o autor, “no curto período de vinte anos, entre 1970 e 1990, houve um boom populacional na região”. O texto revela uma questão interessante: as pessoas viviam “temporariamente em Foz”, já, as novas gerações, não fazem “planos para mudar da cidade”.

Um fato: os nascidos ou chegados a essa região entre 1970 e 1990, estão assumindo postos e tomando decisões pessoais ou coletivas; é assim o protagonismo da “primeira geração do boom”. Por volta de 2030 a 2050, teremos a segunda geração de iguaçuenses.

Em artigo publicado na revista Orbis Latina, da UNILA, Micael Alvino, analisa a influência de Itaipu Binacional na experiência fronteiriça. O texto além de revelador, nos traz uma conclusão ajustada ao presente. Em suas “Considerações Finais”, “As famílias que chegavam ao Brasil ou ao Paraguai para trabalhar na construção Itaipu não filosofavam sobre integração ou aproximação entre povos da América do Sul. Eles faziam parte de um processo de integração social promovido pela necessidade de construir a usina.

Não estudavam integração, mas faziam integração. Reservadas as diferenças, o caso das crianças brasileiras que compartilhavam o espaço escolar com as crianças paraguaias lembra o que ocorreu nos primórdios da União Europeia. O primeiro passo da integração social na Europa também começou com crianças francesas compartilhando o espaço escolar com crianças alemãs. Como resultado, essas experiências contribuíram para conhecimento, respeito mútuo e relações sociais cada vez mais estreitas entre brasileiros e paraguaios.

Esse aspecto, que destaquei da nova experiência fronteiriça, é apenas uma parte da história da mais importante fronteira da América do Sul e de uma das fronteiras mais dinâmicas da América Latina (BLANC e FREITAS, 2018, p. 6). Para os fins deste ensaio, reforço que a evidência para meu argumento da formação de uma nova mentalidade fronteiriça de integração regional a partir da Itaipu reside principalmente na memória dos construtores da usina. Chamados de barrageiros, é comum encontrar septuagenários nos espaços sociais dos bairros residenciais construídos por Itaipu na década de 1970. Essas pessoas, seus filhos e seus netos entendem a fronteira, especialmente a Tríplice Fronteira, como um lugar de encontro e não de separação entre o Brasil e o Paraguai. Esse foi um dos resultados produzidos depois que os Estados brasileiro e paraguaio decidiram seguir adiante com uma estratégia binacional de desenvolvimento regional”.

Para Nara Oliveira, professora universitária em Antropologia Cultural, curadora independente e autora do livro Foz do Iguaçu Intercultural: Cotidiano e Narrativas da Alteridade, os “Monumentos da Engenharia não nascem para provocar consensos, ao contrário, antes mesmo de brotarem da terra, já dividem opiniões, povoam as retóricas políticas, abastecem as pautas das mídias, enfim seu destino parece ser controverso. A Usina Hidrelétrica Itaipu, passadas 4 décadas da operação da primeira turbina, continua a atrair a atenção da opinião pública. Sobre ela, já se leu e ouviu falar de um tudo.

Em 1970, há 5 décadas, o advento das obras para a construção da Usina provocou uma espantosa transformação na vida dos pouco mais de 30 mil habitantes de Foz do Iguaçu. Em 1980, a população ultrapassou a marca dos 130 mil. Frequentemente, pessoas migram para trabalhar em grandes obras nas metrópoles, na pequena Foz do Iguaçu dos anos 70, além da hidrelétrica, os migrantes construíram uma nova cidade e, nela, uma vida urbana.

Sem dúvida, a construção da Usina está na origem da frenética mudança. Parte do reordenamento urbano, social e cultural foi previsto por Itaipu, entretanto, de lá para cá, a cidade descortinada, é outra. A Foz do Iguaçu de hoje corresponde ao espaço social construído cotidianamente por pessoas e grupos cujos pertencimentos transbordam os territórios. Os usos e apropriações dos espaços urbanos expressam a maneira que estes grupos encontram de identificarem-se com a cidade e por ela serem identificados. Talvez, a cidade imprevista, seja o maior legado decorrente desse episódio histórico. Nela, cada um de nós, pessoas vindas de diversos cetros e locais, estados e países, habitam a cidade, criando, ocupando e percorrendo trilhas sociais.

Na Tríplice Fronteira, pessoas comuns preservam sentidos tradicionais e descobrem novos rumos, somam e subtraem sociabilidades, produzem, inventam e reproduzem práticas culturais na tentativa de conciliar múltiplos mundos e pertencimentos. A alteridade das gentes que configuram a paisagem humana e urbana do lugar e os variados modos de construírem suas vidas e de se relacionarem, parece ser a face mais sedutora e misteriosa da Foz do Iguaçu intercultural”.
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